"Que minha dor seja motivo de alegria para alguém, mas que meu riso jamais seja motivo para a dor de alguém".
Charles Chaplin (1889-1977)
No
ápice do cenário de entroncamento do Capitalismo com a Revolução Industrial,
tendo em vista suas respectivas historicidades, que Charles Spencer Chaplin (1889-1977)
nasce, cresce e se mostra ao mundo como um dos maiores ícones do cinema.
Nascido em 16 de Abril de 1889 em Walworth, Londres, Inglaterra. Chaplin teve
uma infância de pauperismo e privações diversas, margeando assim disfunções
sociais, como endossa BAZIN (2006, p. 09, 10): “Charles Chaplin, abandonado
pelo pai alcoólatra, viveu seus primeiros anos na angústia de ver a mãe ser
levada para o asilo; depois, quando a internaram definitivamente, na aflição de
ser perseguido pela polícia. Era um pequeno vagabundo de nove anos que se
esgueirava pelos muros de Kensignton Road. (...) cuja mãe morreu louca, beirou
a alienação... (...). De uns anos pra cá, vem se estudando mais seriamente o
caso de crianças que cresceram no isolamento, na miséria moral, física ou
material, e os especialistas descrevem o autismo como mecanismo de defesa...
(...) Carlitos não é antissocial, mas associal, e que aspira a ingressar na
sociedade (...). Embora não fosse o único cineasta a descrever a fome, foi o
único a conhece-la...”.
Os
filmes de Chaplin com certa frequência traziam alguma relação de desnude da
pobreza, até porque o personagem Carlitos tipificava o clássico vagabundo.
Contudo, Chaplin conseguia ir além de um estereótipo de naturalização da
pauperização. Chaplin tateava uma reafirmação das características
representativas da classe proletária para além da carência financeira,
atributos estes que HOGGART (1973) afirmou tempos depois estar sendo
desconstruído intencionalmente, ou seja, a classe proletária está ficando sem classe
(identidade, representatividade, tipificação).
Chaplin
vale-se da arte cinematográfica para demostrar que no campo da pobreza existem
virtudes que os define no âmbito da cidadania (humanização). A exemplo tem-se a
representação do personagem Carlitos em O
Circo (1928) que faminto e com apenas uma fatia de pão nas mãos, ainda sim
compartilha do alimento com uma garota igualmente faminta – demonstrando a
fraternidade/irmandade como característica intrínseca nas classes
desfavorecidas economicamente. Isto também fica notório Em Busca do Ouro (1925) quando Carlitos faz de sua bota a refeição
principal, e com intencionalidade fraternal ele a compartilha.
Charles
Chaplin se consagrou como ator, especialmente na figura de Carlitos (conhecido
também por: Charlot, The Tramp, O
Vagabundo[1] - personagem
de inúmeros filmes de Chaplin). Entretanto, Chaplin também atuou como diretor,
roteirista, produtor de trilhas sonoras musicais para seus próprios filmes. E
por ter total controle sobre suas produções cinematográficas fora, então,
possível transparecer seu estranhamento com a sociedade moderna através de uma
tragicomicidade imanente à Chaplin (e ao seu cinema).
Chaplin
usou o cinema como forma de dialogar com várias temáticas sociais da sua época
(algumas destas ainda latentes, mesmo 100 anos depois do surgimento de Carlitos
- 1914), a saber: luta de classe, preconceitos sociais, desigualdade social, exploração
do trabalhador, desumanização das relações sociais e política. Como acrescenta
LOURENÇO (2008, p. 91, 93, 96): “Em suas aventuras, Carlitos descortina as
contradições da sociedade moderna, fundada sobre o modo de produção desigual em
sua essência. Em síntese, ele é um homem simples, o vagabundo que luta contra
as dificuldades quase insuperáveis e que desenvolve a paz e a ordem ao universo
apenas pelas suas atitudes humanistas contra o esfacelamento do tecido social.
(...) Apesar de possuir características típicas de um anti-heroi, ele está
sempre lutando contra sua miserável realidade (...) a pobreza lhe é um
infortúnio, não necessariamente uma vergonha. (...) Chaplin não criava um mundo
burguês idealizado, seus cenários eram subúrbios, bares populares e guetos, que
eram desprezados pela indústria do cinema”.
O
cenário da vida cotidiana do “vagabundo” era o fio condutor dos filmes de
Charles Chaplin, especialmente os protagonizados por Carlitos. Tal predileção
pela narratividade da pobreza não era comum nos tempos de Chaplin, como destaca
SKLAR (1975, p. 138): “Pouquíssimos diretores se interessaram por retratar a
vida dos pobres ou foram capazes de faze-los; e posto que os cenários de
Chaplin pareçam muitas vezes exóticos e estilizados, seus temas são
invariavelmente essenciais: como sobreviver, como encontrar comida, abrigo,
segurança, companheirismo, amor. Poder-se-á argumentar que os extremos dos seus
finais sentimentais são compensações para os extremos do seu realismo social”.
A
película Tempos Modernos (1936) é uma
das principais obras de crítica ao taylorismo-fordismo (industrialização e
mecanicismo produtivo) inerente àquela época. Neste filme, Chaplin começa a
provocar reflexões acerca do homem e a sociedade, destacando forte ênfase sobre
o processo de desumanização do Capitalismo industrial. Contudo, é válido
demonstrar a forma cinematográfica (estética) que os personagens se apresentam
na referida película, desnudando algumas especificidades tanto do “funcionário”
quanto do “patrão” – desnude do sistema capitalista opressor. Como acrescenta
ALVES (2005, p. 66, 67): “Suas (referindo-se
a Carlitos) transgressões
involuntárias, que são muitas no decorrer do filme, são uma forma inconsciente
de denunciar a corrosão da autonomia individual pelo capitalismo moderno. Sua
inadequação é quase instintiva, pois, por mais que queira, ele não pode se
sbsumir sem resíduos sob seu papel na divisão alienada do trabalho. O que
presenciamos é o choque trágico (e cômico) de um homem comum com a realidade
estranhada – destaque do autor”.
As
representações imagéticas de Tempos
Modernos (1936) apresenta o proletariado como uma figura nada
carismática/simpática imergidos num conflito social-econômico de proporções constrangedoras
e opressoras. Provocando desta maneira debates sobre direitos humanos e
desigualdade social a partir do processo produtivo contemporâneo. Talvez, por
causa desta magnitude sociológica, Chaplin decidiu fazer em Tempos Modernos a última aparição de “O
Vagabundo” nas telas. Ficando para as gerações posteriores um lampejo de
denuncia social, como anos depois ele mesmo escreve (CHAPLIN, 1965, p. 403): “Pensamos
em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de
humanidade. Mais do que de inteligência, de afeição e doçura. Sem essas
virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido”.
Para
além das representações de classe, ou denúncias sociais do pauperismo, tanto
Chaplin como o próprio cinema se mostram como uma ponte possível entre o
imaginário adormecido e o real imaginativo esperado pelas platéias. Desta
sucessão de conflitos fantasmagóricos, muita das vezes imperceptíveis, que
preconiza o cinema como ferramenta da psicanálise, ou vice-versa – desvelando
rupturas para além do consciente visível.
A
história do cinema se emaranha (margeia e enamora) com a história da
psicanálise, isto se fundamenta a partir do marco principal em Freud, especificamente
com a obra A Interpretação dos Sonhos
em 1899. Sendo que deste a referida publicação os sonhos perderam sua
simbologia divina e agregavam, então, a realização de um desejo infantil
reprimido (conflitoso). E assim, Freud desnuda o que fora conhecido como
inconsistente. A cinematografia personifica os sonhos (de gente acordada),
torna visual o mal-estar estrutural da vida e engloba valores soterrados nos
espectadores (sujeitos em processo de catástase).
É
por meio da aproximação cinema e psicanálise que se torna possível interagir
com o obscuro existencial reprimido com fins de uma apreciação artística
(TELLES, 2004). Ato este que desvela as potências inventivas dos diretores e
criadores de histórias (roteiros), bem como as personagens que tipificam as
verdades mais profundas da alma dos inventores. Obviamente, Freud não se ocupou
da nova arte (cinema), mesmo tendo conhecimento da relação estreita existente
entre os aparelhos ópticos e o aparelho psíquico. Freud não escreveu nada sobre
o cinema, seu contato com o cinema se deu pela primeira vez em 1909, nos
Estados Unidos (RIVERA, 2008).
A
produção cinematográfica de Chaplin demonstra na prática que o inconsciente age
de forma decisória sobre o consciente. Carlitos (personagem) se tornou uma paródia
poética da tragicomicidade da infância sofrida (desafortunada) de Charles
Chaplin (autor). Ao que parece Chaplin nunca conseguiu se desassociar dos
rastros mnêmicos[2]
das mazelas/traumas sofridas na infância (inconsciente), e isto transparecia (consciente)
em suas películas por meio da representação dos personagens, cenários e
histórias (LOURENÇO, 2008).
Chaplin
usou o cinema como palco para promover a sua própria experiência e possibilitou
ao espectador a igual condição de fazer experiências a partir do cinema
chapliniano. Estas possíveis experiências, tanto do autor quanto do espectador,
só eram tangíveis, pois para Chaplin o cinema era uma forma de comunicação
(discurso-representativo) de sua própria vida, e para a platéia as
representações estéticas assistidas dialogavam com suas histórias cotidianas.
A
experiência estética do cinema de Chaplin era capaz, mesmo num cinema mudo, de
transportar da língua ao discurso (AGAMBEN, 2008) e fazer representar o que nos passa, o que nos acontece, o que nos
toca, indo para além da vivência do que passa, acontece ou toca (LAROSSA,
2002). A experiência acontece na obra fílmica de Chaplin porque “...não tem a
pretensão de transmitir um acontecimento, pura e simplesmente (como a
informação o faz); integra-o á vida do narrador, para passa-lo aos ouvintes
como experiência... (BENJAMIN, 1992, p. 38).
Por
tudo que fora exposto, é válido reiterar que, cinema (especialmente o
chapliniano no que tange a crítica ao pauperismo) e psicanálise são fluidos do
mesmo mecanismo. Valendo-se, enão, da arte como forma de desnude da
personalidade camuflada, como assevera RIVERA (2008, p. 09): “Entre a presença
de imagens em sucessão e o escuro – o intervalo que o filme nos apresenta
(ainda que não o percebamos) -, o cinema pode nos tranquilizar em um mundo
homogêneo, ou lançar-nos na vertigem de um aleph.
A arte, podemos dizer de uma forma geral – e, portanto, sempre um tanto
grosseira -, desperta no homem o que há nele de mais agudo e essencial,
trazendo à tona, numa brecha fulgurante, o que faz dele um sujeito. (...) à
psicanálise interessa esse mesmo ponto agudo da constituição, da dor e da fruição
do sujeito. A psicanalise nasce entrelaçada à arte...”
Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 05 de Dezembro de 2014]
[1] Sobre o surgimento de “O
Vagabundo”, Chaplin pondera: “...a caminho do
guarda-roupa, pensei em usar umas calças bem largas, estilo balão, sapatos
enormes, um casaquinho bem apertado e um chapéu-coco pequenino, além de uma
bengalinha. Queria que tudo estivesse em contradição (...) Não tinha nenhuma
ideia sobre a psicologia do personagem. Mas, no momento que assim me vesti, as
roupas e a caracterização me fizeram compreender a espécie de pessoa que ele
era. Comecei a conhecê-lo e, no momento em que entrei no palco de filmagem, ele
já havia nascido. Estava totalmente definido” (CHAPLIN, 1965, p. 141, 142).
[2]
“A memória é a capacidade de registrar, manter e evocar as experiências e os
fatos já ocorridos (...) Tudo o que uma pessoa aprende em sua vida depende
intimamente da capacidade de memorização (...) Alguns dos principais
pesquisadores atuais em neurociências e comportamento atribuem papel central da
memória na própria definição e na constituição do ser humano. (...) somos
aquilo que recordamos (ou que, de um modo ou de outro, resolvemos esquecer)” (DALGALARRONDO,
2008, p. 137).
::Referências Bibliográficas::
AGAMBEN,
Giorgio. Infância e História. Destruição
da Experiência e Origem da História. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
ALVES,
Giovanni. A Batalha de Carlitos: Trabalho
e Estranhamento em Tempos Modernos, de Charles Chaplin. Revista ArtCultura.
Uberlândia, v. 7, n. 10, p. 65-81, jan-jun. 2005.
BAZIN,
André. Charlie Chaplin. Rio de
Janeiro: ZAHAR, 2006.
BENJAMIN,
Walter. Sobre Arte, Técnica, Magia e
Política. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.
CHAPLIN, C. História
da Minha Vida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965.
HOGGART,
Richard. As Utilizações Da Cultura – Aspectos
da Vida Cultural da Classe trabalhadora. 1° Volume. Lisboa: Editorial
Presença, 1973.
LARROSA,
Jorge, Notas sobre a Experiência e o Saber
de Experiência. Revista Brasileira de Educação. Campinas, nº 19, p. 20-28,
jan./fev./mar./abr. 2002.
LOURENÇO,
Júlio César. Os conflitos de Carlitos
frente às Contradições da Sociedade Moderna. Revista Anagrama: Revista
Cientifica Interdisciplinar da Graduação da USP, v. 2, n. 2, p. 90-106. 2008.
RIVERA,
Tânia. Cinema, Imagem e Psicanálise.
Rio de Janeiro: ZAHAR, 2008.
SKLAR,
Robert. História Social do Cinema
Americano. São Paulo: Cultrix, 1975.
TELLES,
Sérgio. O Psicanalista vai ao Cinema: Artigos
e Ensaios sobre Psicanálise e Cinema. São Paulo: EdUFSCar, 2004.