segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Charles Chaplin e a exposição estética da pobreza


"Que minha dor seja motivo de alegria para alguém, mas que meu riso jamais seja motivo para a dor de alguém".
Charles Chaplin (1889-1977)

No ápice do cenário de entroncamento do Capitalismo com a Revolução Industrial, tendo em vista suas respectivas historicidades, que Charles Spencer Chaplin (1889-1977) nasce, cresce e se mostra ao mundo como um dos maiores ícones do cinema. Nascido em 16 de Abril de 1889 em Walworth, Londres, Inglaterra. Chaplin teve uma infância de pauperismo e privações diversas, margeando assim disfunções sociais, como endossa BAZIN (2006, p. 09, 10): “Charles Chaplin, abandonado pelo pai alcoólatra, viveu seus primeiros anos na angústia de ver a mãe ser levada para o asilo; depois, quando a internaram definitivamente, na aflição de ser perseguido pela polícia. Era um pequeno vagabundo de nove anos que se esgueirava pelos muros de Kensignton Road. (...) cuja mãe morreu louca, beirou a alienação... (...). De uns anos pra cá, vem se estudando mais seriamente o caso de crianças que cresceram no isolamento, na miséria moral, física ou material, e os especialistas descrevem o autismo como mecanismo de defesa... (...) Carlitos não é antissocial, mas associal, e que aspira a ingressar na sociedade (...). Embora não fosse o único cineasta a descrever a fome, foi o único a conhece-la...”.

Os filmes de Chaplin com certa frequência traziam alguma relação de desnude da pobreza, até porque o personagem Carlitos tipificava o clássico vagabundo. Contudo, Chaplin conseguia ir além de um estereótipo de naturalização da pauperização. Chaplin tateava uma reafirmação das características representativas da classe proletária para além da carência financeira, atributos estes que HOGGART (1973) afirmou tempos depois estar sendo desconstruído intencionalmente, ou seja, a classe proletária está ficando sem classe (identidade, representatividade, tipificação).

Chaplin vale-se da arte cinematográfica para demostrar que no campo da pobreza existem virtudes que os define no âmbito da cidadania (humanização). A exemplo tem-se a representação do personagem Carlitos em O Circo (1928) que faminto e com apenas uma fatia de pão nas mãos, ainda sim compartilha do alimento com uma garota igualmente faminta – demonstrando a fraternidade/irmandade como característica intrínseca nas classes desfavorecidas economicamente. Isto também fica notório Em Busca do Ouro (1925) quando Carlitos faz de sua bota a refeição principal, e com intencionalidade fraternal ele a compartilha.

Charles Chaplin se consagrou como ator, especialmente na figura de Carlitos (conhecido também por: Charlot, The Tramp, O Vagabundo[1] - personagem de inúmeros filmes de Chaplin). Entretanto, Chaplin também atuou como diretor, roteirista, produtor de trilhas sonoras musicais para seus próprios filmes. E por ter total controle sobre suas produções cinematográficas fora, então, possível transparecer seu estranhamento com a sociedade moderna através de uma tragicomicidade imanente à Chaplin (e ao seu cinema).

Chaplin usou o cinema como forma de dialogar com várias temáticas sociais da sua época (algumas destas ainda latentes, mesmo 100 anos depois do surgimento de Carlitos - 1914), a saber: luta de classe, preconceitos sociais, desigualdade social, exploração do trabalhador, desumanização das relações sociais e política. Como acrescenta LOURENÇO (2008, p. 91, 93, 96): “Em suas aventuras, Carlitos descortina as contradições da sociedade moderna, fundada sobre o modo de produção desigual em sua essência. Em síntese, ele é um homem simples, o vagabundo que luta contra as dificuldades quase insuperáveis e que desenvolve a paz e a ordem ao universo apenas pelas suas atitudes humanistas contra o esfacelamento do tecido social. (...) Apesar de possuir características típicas de um anti-heroi, ele está sempre lutando contra sua miserável realidade (...) a pobreza lhe é um infortúnio, não necessariamente uma vergonha. (...) Chaplin não criava um mundo burguês idealizado, seus cenários eram subúrbios, bares populares e guetos, que eram desprezados pela indústria do cinema”.

O cenário da vida cotidiana do “vagabundo” era o fio condutor dos filmes de Charles Chaplin, especialmente os protagonizados por Carlitos. Tal predileção pela narratividade da pobreza não era comum nos tempos de Chaplin, como destaca SKLAR (1975, p. 138): “Pouquíssimos diretores se interessaram por retratar a vida dos pobres ou foram capazes de faze-los; e posto que os cenários de Chaplin pareçam muitas vezes exóticos e estilizados, seus temas são invariavelmente essenciais: como sobreviver, como encontrar comida, abrigo, segurança, companheirismo, amor. Poder-se-á argumentar que os extremos dos seus finais sentimentais são compensações para os extremos do seu realismo social”.

A película Tempos Modernos (1936) é uma das principais obras de crítica ao taylorismo-fordismo (industrialização e mecanicismo produtivo) inerente àquela época. Neste filme, Chaplin começa a provocar reflexões acerca do homem e a sociedade, destacando forte ênfase sobre o processo de desumanização do Capitalismo industrial. Contudo, é válido demonstrar a forma cinematográfica (estética) que os personagens se apresentam na referida película, desnudando algumas especificidades tanto do “funcionário” quanto do “patrão” – desnude do sistema capitalista opressor. Como acrescenta ALVES (2005, p. 66, 67): “Suas (referindo-se a Carlitos) transgressões involuntárias, que são muitas no decorrer do filme, são uma forma inconsciente de denunciar a corrosão da autonomia individual pelo capitalismo moderno. Sua inadequação é quase instintiva, pois, por mais que queira, ele não pode se sbsumir sem resíduos sob seu papel na divisão alienada do trabalho. O que presenciamos é o choque trágico (e cômico) de um homem comum com a realidade estranhada – destaque do autor”.

As representações imagéticas de Tempos Modernos (1936) apresenta o proletariado como uma figura nada carismática/simpática imergidos num conflito social-econômico de proporções constrangedoras e opressoras. Provocando desta maneira debates sobre direitos humanos e desigualdade social a partir do processo produtivo contemporâneo. Talvez, por causa desta magnitude sociológica, Chaplin decidiu fazer em Tempos Modernos a última aparição de “O Vagabundo” nas telas. Ficando para as gerações posteriores um lampejo de denuncia social, como anos depois ele mesmo escreve (CHAPLIN, 1965, p. 403): “Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido”.

Para além das representações de classe, ou denúncias sociais do pauperismo, tanto Chaplin como o próprio cinema se mostram como uma ponte possível entre o imaginário adormecido e o real imaginativo esperado pelas platéias. Desta sucessão de conflitos fantasmagóricos, muita das vezes imperceptíveis, que preconiza o cinema como ferramenta da psicanálise, ou vice-versa – desvelando rupturas para além do consciente visível.

A história do cinema se emaranha (margeia e enamora) com a história da psicanálise, isto se fundamenta a partir do marco principal em Freud, especificamente com a obra A Interpretação dos Sonhos em 1899. Sendo que deste a referida publicação os sonhos perderam sua simbologia divina e agregavam, então, a realização de um desejo infantil reprimido (conflitoso). E assim, Freud desnuda o que fora conhecido como inconsistente. A cinematografia personifica os sonhos (de gente acordada), torna visual o mal-estar estrutural da vida e engloba valores soterrados nos espectadores (sujeitos em processo de catástase).

É por meio da aproximação cinema e psicanálise que se torna possível interagir com o obscuro existencial reprimido com fins de uma apreciação artística (TELLES, 2004). Ato este que desvela as potências inventivas dos diretores e criadores de histórias (roteiros), bem como as personagens que tipificam as verdades mais profundas da alma dos inventores. Obviamente, Freud não se ocupou da nova arte (cinema), mesmo tendo conhecimento da relação estreita existente entre os aparelhos ópticos e o aparelho psíquico. Freud não escreveu nada sobre o cinema, seu contato com o cinema se deu pela primeira vez em 1909, nos Estados Unidos (RIVERA, 2008).

A produção cinematográfica de Chaplin demonstra na prática que o inconsciente age de forma decisória sobre o consciente. Carlitos (personagem) se tornou uma paródia poética da tragicomicidade da infância sofrida (desafortunada) de Charles Chaplin (autor). Ao que parece Chaplin nunca conseguiu se desassociar dos rastros mnêmicos[2] das mazelas/traumas sofridas na infância (inconsciente), e isto transparecia (consciente) em suas películas por meio da representação dos personagens, cenários e histórias (LOURENÇO, 2008).

Chaplin usou o cinema como palco para promover a sua própria experiência e possibilitou ao espectador a igual condição de fazer experiências a partir do cinema chapliniano. Estas possíveis experiências, tanto do autor quanto do espectador, só eram tangíveis, pois para Chaplin o cinema era uma forma de comunicação (discurso-representativo) de sua própria vida, e para a platéia as representações estéticas assistidas dialogavam com suas histórias cotidianas.

A experiência estética do cinema de Chaplin era capaz, mesmo num cinema mudo, de transportar da língua ao discurso (AGAMBEN, 2008) e fazer representar o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca, indo para além da vivência do que passa, acontece ou toca (LAROSSA, 2002). A experiência acontece na obra fílmica de Chaplin porque “...não tem a pretensão de transmitir um acontecimento, pura e simplesmente (como a informação o faz); integra-o á vida do narrador, para passa-lo aos ouvintes como experiência... (BENJAMIN, 1992, p. 38).

Por tudo que fora exposto, é válido reiterar que, cinema (especialmente o chapliniano no que tange a crítica ao pauperismo) e psicanálise são fluidos do mesmo mecanismo. Valendo-se, enão, da arte como forma de desnude da personalidade camuflada, como assevera RIVERA (2008, p. 09): “Entre a presença de imagens em sucessão e o escuro – o intervalo que o filme nos apresenta (ainda que não o percebamos) -, o cinema pode nos tranquilizar em um mundo homogêneo, ou lançar-nos na vertigem de um aleph. A arte, podemos dizer de uma forma geral – e, portanto, sempre um tanto grosseira -, desperta no homem o que há nele de mais agudo e essencial, trazendo à tona, numa brecha fulgurante, o que faz dele um sujeito. (...) à psicanálise interessa esse mesmo ponto agudo da constituição, da dor e da fruição do sujeito. A psicanalise nasce entrelaçada à arte...”

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 05 de Dezembro de 2014]



[1] Sobre o surgimento de “O Vagabundo”, Chaplin pondera: “...a caminho do guarda-roupa, pensei em usar umas calças bem largas, estilo balão, sapatos enormes, um casaquinho bem apertado e um chapéu-coco pequenino, além de uma bengalinha. Queria que tudo estivesse em contradição (...) Não tinha nenhuma ideia sobre a psicologia do personagem. Mas, no momento que assim me vesti, as roupas e a caracterização me fizeram compreender a espécie de pessoa que ele era. Comecei a conhecê-lo e, no momento em que entrei no palco de filmagem, ele já havia nascido. Estava totalmente definido” (CHAPLIN, 1965, p. 141, 142).
[2] “A memória é a capacidade de registrar, manter e evocar as experiências e os fatos já ocorridos (...) Tudo o que uma pessoa aprende em sua vida depende intimamente da capacidade de memorização (...) Alguns dos principais pesquisadores atuais em neurociências e comportamento atribuem papel central da memória na própria definição e na constituição do ser humano. (...) somos aquilo que recordamos (ou que, de um modo ou de outro, resolvemos esquecer)” (DALGALARRONDO, 2008, p. 137).


::Referências Bibliográficas::

AGAMBEN, Giorgio. Infância e História. Destruição da Experiência e Origem da História. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
ALVES, Giovanni. A Batalha de Carlitos: Trabalho e Estranhamento em Tempos Modernos, de Charles Chaplin. Revista ArtCultura. Uberlândia, v. 7, n. 10, p. 65-81, jan-jun. 2005.
BAZIN, André. Charlie Chaplin. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2006.
BENJAMIN, Walter. Sobre Arte, Técnica, Magia e Política. Lisboa: Relógio D’Água, 1992.
CHAPLIN, C. História da Minha Vida. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965.
HOGGART, Richard. As Utilizações Da Cultura – Aspectos da Vida Cultural da Classe trabalhadora. 1° Volume. Lisboa: Editorial Presença, 1973.
LARROSA, Jorge, Notas sobre a Experiência e o Saber de Experiência. Revista Brasileira de Educação. Campinas, nº 19, p. 20-28, jan./fev./mar./abr. 2002.
LOURENÇO, Júlio César. Os conflitos de Carlitos frente às Contradições da Sociedade Moderna. Revista Anagrama: Revista Cientifica Interdisciplinar da Graduação da USP, v. 2, n. 2, p. 90-106. 2008.
RIVERA, Tânia. Cinema, Imagem e Psicanálise. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2008.
SKLAR, Robert. História Social do Cinema Americano. São Paulo: Cultrix, 1975.
TELLES, Sérgio. O Psicanalista vai ao Cinema: Artigos e Ensaios sobre Psicanálise e Cinema. São Paulo: EdUFSCar, 2004.

domingo, 23 de novembro de 2014

Bourdieu: uma nova percepção da realidade


"deve-se distinguir entre os leitores, os comentadores, que lêem para falar em
seguida do que se leu; e os que lêem para fazer algo, para fazer avançar o
conhecimento, os autores".
Pierre Bourdieu (1930-2002)

Pierre Bourdieu (1930-2002) é considerado um dos grandes pensadores do século XX. Começou sua produção intelectual na década de 1960 e desenvolveu, ao longo dos anos, estudos sociológicos com a perspectiva de denunciar a dominação social que se dá na escola e nas relações sociais de uma forma geral. Por meio de seus estudos no âmbito da Sociologia, apresentou novos conceitos, dentre os quais se destaca: o habitus, a violência simbólica, o conceito de campo e os tipos de capitais.

O conceito de habitus é importantíssimo para a compreensão das práticas assimiladas como legitimas e ilegítimas, numa determinada sociedade e num determinado tempo histórico. Pode-se entender por habitus o resultado das interações, perceptíveis ou não, que definem a forma de ser do indivíduo numa classe social. Para tanto, Bourdieu critica a formação das escolhas pessoais, o gosto por, e as formas de comunicação/expressão como construídos (herdados) socialmente e reconfirmado pelas instituições reguladoras, especialmente a escola e família.

A ideia de violência simbólica foi uma das grandes denuncias feita por Bourdieu em sua literatura. Para Bourdieu a violência simbólica se dá pela castração (simbólica) das personalidades, condicionando as pessoas ao padrão coletivo aceitável como legitimo. O processo de violência simbólica se desenvolve ao longo da vida do individuo como um regulador das práticas culturalmente aceitas. Para Bourdieu a escola é um dos mais adequados ninho de agentes violentadores, fortemente regulamentado pela autoridade coercitiva educativa.

O conceito de campo social em Bourdieu representa os espaços de dominação e conflitos entre as classes sociais e as diferentes culturas. Elementos estes que estão em constante subversão entre si com o intento de classificar, desclassificar e reclassificar os padrões legitimizadores. Para que haja condições de sobrevivência nestes campos, segundo Bourdieu, é preciso que se conheçam as estratégias de campo, ou seja, é preciso conhecer quais os valores, ideais, ideologias, utopias, crendices, medos, intentos, omissões, verdades e mentiras de cada diferente campo para, então, ter condições de jogar.

Pierre Bourdieu acreditava que não havia apenas o capital econômico como forma de capital (forma de troca e valor extrínseco). Por isto, concebeu outras formas de capital, a saber: capital cultural, capital social, capital intelectual. O capital intelectual refere-se à instrução acadêmica e nível de conhecimento formal. O capital social refere-se à rede de relacionamentos de cada pessoa. O capital cultural é o resultante da interação de todos os capitais que define o ethos de cada pessoa em um determinado grupo social.

O sistema de escolarização fora outro objeto de investigação para Bourdieu. Para ele a escola não detinha condições sociais, intelectuais e nem culturais para ser neutra e ofertar um conhecimento de forma igualitária e relevante. Para Bourdieu a escola funcionava como agente de manipulação das classes dominantes com o intuito de desclassificar alguns (grupos minoritários e/ou desfavorecidos). Sendo assim, a proposta de educação para todos era uma dissimulação da verdade e das condições reais de desenvolvimento social.

Pierre Bourdieu trouxe várias contribuições para o desnude da realidade contemporânea. Extrapolou a concepção marxista de vinculação do social meramente condicionado ao processo produtivo e levou-o a perspectivas simbólicas veladas. Para Bourdieu cada pessoa é fruto de conexões limitadas socialmente, culturalmente, intelectualmente e economicamente. E neste duelo de campos os indivíduos se encontram em processo de constante transformação/conflito com fins a desfrutar a aceitação presente.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 15 de Novembro de 2014]

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Desnaturalização da percepção das desigualdades


“A pobreza antes era considerada obra de injustiça. O mundo moderno considera a pobreza incapacidade”.
Eduardo Galeano (1940 -  )

A pobreza, atualmente, tem se tornado sinônimo de ausência de virtudes individuais, promiscuidade, vadiagem, incompetência, preguiça, criminalidade e vagabundagem. Esta é uma concepção malthusianista (Thomas Malthus, 1766-1834) que defendia que o pobre é pobre por causa de si mesmo, pois não tem determinação (iniciativa), força de vontade e vive de forma desiquilibrada - especialmente no quesito sexualidade, gravidez/natalidade (SCHWARTZMAN, 2004).

Ser pobre, no presente contexto histórico, é encontrar-se de forma análoga com as mazelas da sociedade capitalista. Estar em estado de pobreza é descobrir-se desumanizado (não cidadão). Entretanto, nem sempre fora assim. A figura do pobre antes do século XVI agregava outras percepções conceituais e políticas, eram outras as construções sociais e fraternas a partir da representação da pobreza.

Reforçando a atual concepção de pobreza ALBERT (1992, p. 17 e 18) pondera: “O que é um pobre? Na maioria das sociedades humanas e das épocas da História, o pobre tem sido, com grande frequência, tratado como um coitado, um inútil, um fracassado, um preguiçoso, um suspeito, e até mesmo um culpado. (...) É possível que uma certa tradição européia considere o pobre mais como vítima do que culpado, e isto, numa percepção multidimensional onde se somam a ignorância e a indigência, a desesperança pessoal e a impotência social”.

A deformidade atual na concepção de pobreza e suas derivações não se deram de forma espontânea, foram provocadas, especialmente por dois movimentos históricos a partir do século XVI (DOWBOR, 1994), a saber: 1) A consolidação do Capitalismo como forma de Governo/mercantilização; e, 2) Os impactos da Revolução Industrial nas relações de trabalho e urbanização. Da transição do Capitalismo Industrial (XVII e XVIII) para o Capitalismo Monopolista-Financeiro (XIX e XX) percebe-se o entrelaçar histórico do Capitalismo e a Revolução Industrial – fato este que corroborou para mudanças sociais.

O Capitalismo tem sua forma embrionária entre os séculos XIII e XIV, especificamente com o surgimento da burguesia - nova classe social que almejava lucro por meio das relações comerciais, sendo estes os possuidores de riquezas e dos meios de produção. Contudo, apenas séculos depois o Capitalismo se estabelece como forma de Governo, a partir da queda do feudalismo e, o então, fortalecimento da industrialização - produção, relações comerciais e lucratividade (HUNT e LAUTZENHEISER, 2013).

Os principais autores que perceberam (e idealizaram) esta nova forma de Governo (capitalista-liberal) foram, entre outros: John Locke (1632-1704), François Quesnay (1694-1774) e Adam Smith (1723-1790). Posteriormente, tal sistema fora criticado e denunciado por Karl Marx (1818-1883). A proposta capitalista-liberal defende o Estado Mínimo - redução da intervenção do Governo nas relações mercantis e econômicas, o que favoreceu a desigualdade empresarial e a exploração do trabalhador, o Livre Mercado - ampla concorrência e competitividade, o que desprestigiou os pequenos produtores/comerciantes e forçou a venda de mão-de-obra como forma de subsistência, e, Individualismo - valorização dos interesses pessoais e capacidades individualizadoras acima da coletividade, o que desestabilizou as relações sociais.

A Revolução Industrial (1760-1914, data final aproximada) aconteceu simultaneamente ao processo de consolidação do Capitalismo como opção de Governo (gestão estatal e mercantil), especialmente pelos países ocidentais. As consequências da Revolução Industrial foram devastadoras no quesito social, porém oportunas para o acúmulo de capital. A precarização das condições de vida, do intelecto e do trabalho facilitou a exploração da classe, doravante denominada, operária. O surgimento do operário fez com a figuração do salário aparecesse e se estabelece de forma relacional com o capital. Sendo assim, os salários eram baixíssimos devido às condições de inchaço populacional, qualificação profissional e demanda, o que oportunizou o acumulo de riqueza pelos donos das industrias/comércios e condicionou socialmente os indivíduos a uma forma de relação social individualizada (GIANNOTTI, 2007).

A Revolução Industrial extinguiu o trabalho artesanal, sendo assim o trabalhador não mais detinha o conhecimento sobre o processo produtivo, limitando-se a uma fração da cadeia produtiva, perdendo a noção de identidade produtiva. Outro problema foi o aglomerado de cidadinos que se amontoaram nos centros urbanos a procura de emprego, submetendo-se a condições de vida precárias e desumanas. E, então, houve uma crescente exploração (escravidão) dos trabalhadores por ocasião da iminente situação econômica dos proletariados/operários.

O novo mundo advindo do Capitalismo e da Revolução Industrial fomentou a migração de pessoas a procura de empregos, fazendo-os abandonar suas terras (quase sempre contexto rural), perdendo suas identidades culturais e sociais. Isto fez com que houvesse uma demanda de pessoas superior à demandada de empregos, gerando marginalização, pobreza e subemprego (posteriormente emprego informal). Nestas condições o trabalhador, antes rural agora urbano, não detinha conhecimentos conceituais, apenas técnicos de produção agrícola, que no presente contexto tornou-se inútil por ocasião das máquinas (produção industrializada). Isto favoreceu a exploração dos operários e salários baixíssimos.

Da fusão Capitalismo e Revolução Industrial o trabalhador perdeu a noção de fraternidade, outrora existente no contexto pré-industrial (ou no comunismo primitivo). Isto se deve ao fato de que a precarização da vida do operário o tornou homo economicus – condicionando a ação humana, exclusivamente, a recompensas e sanções econômicas. Sendo assim, as pessoas estavam mais preocupadas com o sustento individual do que com as relações sociais (e o contexto social que estavam inseridos), impedidos de visualizar a pauperização coletiva dos mesmos.

Endossando tais premissas de pauperização NETTO (2010, p. 40, 41, 45, 47) reitera: “As indústrias se expandem, mas simultaneamente ocorre um processo de pauperização da população, com aumento descontrolado da mendicância e dos trabalhadores empobrecidos e socialmente desprotegidos (...) com a dissolução dos feudos, da vassalagem, imensos contingentes é expulso das terras, sem direitos... (...) A pauperização do trabalhador empurra, para o mercado produtivo, mulheres e crianças em terna idade, cujo envolvimento na luta pela sobrevivência não é suficiente para a reprodução digna da vida humana. (...) O processo de organização do trabalho do capital tem por finalidade última a expansão e a concentração do próprio capital...”

A desestabilização social, econômica, agrária, educacional e produtiva fez surgir, inevitavelmente, a figura do pobre como se concebe na atualidade. Dando a entender que pobreza é um desarranjo social com implicações apenas individuais (força de vontade, pensamento positivo, motivação pessoal - concepção malthusianista). Ignorando toda a abrangência coletiva que a temática pobreza circunscreve. Transferindo toda a culpa da pobreza para a zona do individualismo do próprio pobre, ignorando que o pobre exista a partir de uma realidade coletiva (interacionista).

A presente concepção de pobreza associada à ausência de virtudes individuais, promiscuidade, vadiagem, incompetência, preguiça, criminalidade e vagabundagem são recortes contemporâneos (últimos quatro séculos) daqueles que ignoram a pobreza como fator sociológico, antropológico e histórico. Tais desvirtudes, sumariamente citadas anteriormente, existem efetivamente no contexto da pobreza, apesar de não ser um estereotipo totalizador, nem de representação de classe. Contudo, tais desvirtudes não se deram ao acaso, foram provocadas intencionalmente. Construir a classe social dos pobres seria oportuno para o estabelecimento do Capitalismo e da Revolução Industrial.

Há pobres, na concepção descrita anteriormente, pois estes são necessários ao sistema econômico vigente. É necessário que haja desempregados para manter os salários dos empregados sempre baixos - Marx chamou este intento de exército de reserva do trabalho (HARVEY, 2005). É necessário que haja distanciamento do local de trabalho com relação ao local de moradia para que os indivíduos sejam estimulados a perder a noção de sujeitos sociais coletivos – perdendo, gradativamente, as características próprias/especificidades proletárias (HOGGART, 1973). É necessário que haja relações de consumo e endividamento (parcelamentos, crediários) para que o dinheiro se multiplique por meio dos juros (acúmulo de capital). Tudo isto endossado pela influência da mídia para condicionar os trabalhadores à aceitação das mudanças sociais e econômicas, como denuncia HOGGART (1973).

Há pobres, como se descreve na atualidade, pois estes figuram (estereotipadamente) o papel de criminosos que perturbam a ordem social pré-estabelecida, portanto, precisam ser marginalizados (afastados, recluídos). Contudo, tal percepção de desordem é constituída, intencionalmente, com fins a desconstruir as relações sociais com o referido pobre. Isto é notório, pois ter medo (ou preconceito) do pobre o coloca em zona de desfiliação (CASTEL, 1998) e desfiguração social, distanciando-o dos grupos sociais, rotulando-o de desordeiros e impedindo-o de refletir sobre sua real condição – é a criminalização da pobreza (TELLES, 2001; ZALUAR, 2004).

O pobre para os padrões contemporâneo é uma massa de modelar, inserindo-o (incluindo-o) precariamente na sociedade (MARTINS, 1997), que tende a adequar-se aos interesses do capital, mesmo que estes não percebam e/ou não queiram. Ser pobre, nesta concepção moderna, ao contrário do que se apregoa por causa das suas desvirtudes, é um fetiche do capital, que se dá ao luxo de oprimir a classe operária sob a ilusão de ascensão social. Pobre é estado oportuno para que haja acumulo de capital, de outrem. Ser pobre nos padrões atuais é encontrar-se em processo de não-cidadania (TELLES, 2001). Contudo, nem sempre fora assim, ser pobre, antes do século XVI, valia-se de outras representações, interações e intenções.

A figura do pobre (pessoa desprovida de) sempre existiu deste os primórdios das civilizações, entretanto, o que vem se modificando ao longo dos tempos é a forma de representação social (sujeito de direito, interação coletiva, estereótipo social e representatividade grupal). O pobre é um ser em estado de mutação permanente, assim como as sociedades o são. Desta forma, as transformações histórico-sociais afetam diretamente na subjetividade da concepção da pobreza (CASSAB, 2001).

Na antiguidade teocêntrica o pobre era visto como estado definitivo a partir da vontade divina. Surge a concepção de que quem nasceu numa condição de vida desfavorável foi porque Deus assim o quis, igualmente, quem nasceu numa condição favorável foi, também, por vontade divina. Desta maneira o ser pobre era um estado aceitável socialmente (MOLLAT, 1989; REZENDE FILHO, 2009). A pobreza não era vista como um estigma de desvirtude, mas sim uma condição de vida proposital.

A concepção de que Deus quer que haja pobres fomentou diversas ações da religiosidade. Era necessário encucar nos pobres a ideologia de seu papel social na pobreza. Para tanto, os pobres serviram como recipientes da caridade da igreja, da monarquia e de movimentos religiosos em geral (REZENDE FILHO, 2009). A religiosidade ao mesmo tempo em que acomodava o pobre no estado de pobreza, intermediava os donativos dos favorecidos financeiramente, criando uma rede de assistencialismo e comodismo social.

Enfrentar a pobreza em tempos teocêntricos era enfrentar Deus (leia-se Igreja Católica). Desta forma, o que restava ao pobre era aguardar a intervenção divina, que se dava na ação eclesiástica. Sendo assim, a figura do pobre era internalizada com extrema naturalidade - paisagem (SUSSEKIND, 1990; TELLES, 1993; TELLES, 1998; FELTRAN, 2005), tanto pelo pobre, como pela igreja. Se havia pobres, então, havia igreja – as duas vertentes se complementam (CASTEL, 1998). Para que esta corrente de caridade permanecesse era imprescindível convencer os ricos de contribuírem na igreja e esta por sua vez orquestrar os repassem aos desafortunados.

A economia da salvação (CASTEL, 1998) se estabelece a partir da premissa que Deus escolheu fazer alguns pobres e outros ricos. Isto para que através do compartilhar os ricos pudessem redimir de seus pecados (concepção errônea e anti-bíblica, mas fortemente difundida na época medieval para ratificar a obtenção da salvação por meio das esmolas). Sendo assim, endossa CASTEL (1998, p. 64 e 65): “...estabelece-se um comércio entre o rico e o pobre, com vantagens para as duas partes: o primeiro ganha sua salvação graças à sua ação caridosa, mas o segundo é igualmente salvo, desde que aceite sua condição. (...) ...o pobre pode, não obstante, ser instrumentalizado enquanto meio privilegiado para que o rico pratique a suprema virtude cristã, a caridade...”.

O abastado, assim como o pobre, era estabelecido por vontade divina, cabendo a ambos cumprir seu papel social. O rico partilhava de sua riqueza (por meio da igreja) e o pobre era o receptáculo das caridades. Desta forma a sociedade se “ajustava” coletivamente. Como assegura REZENDE FILHO (2009, p. 3): “Os pobres adquirem, na ótica cristã do período, um caráter de funcionalidade: sempre devem existir pobres, para que os ‘não-pobres’ possam assisti-los, qualificando-se como bons cristãos”.

O problema é que passados alguns séculos os detentores do capital não mais queria dividir suas riquezas com o pobre, nem deixar a igreja ser a intermediaria deste processo “solidário”. Neste ínterim, o teocentrismo enfraquece (razões principais: corrupção interna, má utilização dos recursos, acumulo de riquezas, doutrina ultrapassada, iluminismo, racionalismo), desnudando uma ruptura gigantesca entre igreja e Estado (e a burguesia).

A monarquia (e a classe emergente de burgueses) queria se libertar da obrigatoriedade da igreja em ajudar os pobres, portanto, romperam com a igreja e criaram Estados independentes da religiosidade (ou criaram religiosidades próprias, equivalentes aos interesses do momento). Sendo assim, o Estado, não mais a igreja, se relacionaria com o pobre, rompendo definitivamente com a intermediação eclesiástica. Surge neste momento histórico as políticas públicas governamentais de assistencialismo social.

O Estado, agora detentor da responsabilidade da ordem social, se articula para resignificar o pobre em seus papéis sociais. Desta forma, os Governos criaram leis que asseguravam a assistência regional do pobre e sua emancipação local. Dai registram-se em vários países da Europa leis que determinam as províncias locais a assistir os pobres em suas limitações (moradia, alimentação, trabalho). A partir deste momento histórico o pobre deixa de ser um sujeito pré-definido divinamente em seu estado de pobreza, e agrega a figura de cidadão de direito.

Por volta de 1522 várias cidades da Europa fazem resoluções legais como medida para enfrentamento da pobreza e inserção dos pobres na sociedade local. Estas políticas municipais (provincianas) tinham como princípios: “a exclusão dos estrangeiros, proibição estrita da mendicância, recenseamento e classificação dos necessitados, desdobramentos de auxílio diferenciados em correspondência com as diversas categorias de beneficiários” (CASTEL, 1998, p. 73).

O decreto de Moulin, na França, em 1556, é mais um exemplo de tentativa governamental em prol da reintegração dos pobres na sociedade local, segue abaixo o artigo 73 do decreto de Moulin (apud CASTEL, 1998, p. 74): “Ordenamos que os pobres de cada cidade, burgo e aldeia sejam alimentados e sustentados pelos habitantes da cidade, burgo ou aldeia de que forem nativos os moradores, a fim de que não possam vagar ou pedir esmola em outros lugares diferentes daqueles em que estão, os quais pobres devem ser informados e certificados do que é dito acima se, para o tratamento de suas doenças, forem obrigados a ir aos burgos ou povoações onde há hospitais centrais e leprosários a isso destinados”.

Uma das primeiras leis assistencialista e de política de bem-estar social foram as Poor Laws (Lei dos Pobres, também conhecida como Estatuto de 1601). A Lei privilegiava a assistência a três grupos de indigentes, a saber: os válidos, os inválidos e as crianças. Os dois últimos grupos recebiam subsídios monetários, mas no primeiro grupo (os válidos) as províncias tinham a obrigação de socorrê-los e fornecer, a estes, trabalho (BLASS, 2006). Aqui ainda se percebe um resquício da atuação da igreja, pois estas ações assistencialistas se davam conjuntamente com as paróquias locais. A Lei dos Pobres começou a ser questionada a partir do crescimento populacional e por causa das migrações urbanas.

No referido período histórico ainda não havia muitas migrações dos pobres para as regiões ditas prosperas (como se acentua na segunda metade da Revolução Industrial). Então, por esta razão era responsabilidade da província do pobre dar-lhe toda assistência possível numa eventual estado de desempregabilidade e pobreza. Portanto, era responsabilidade do Estado cuidar dos vagabundos (nome não pejorativo, mas denotava aqueles que vagavam) e eventuais peregrinos (reconduzindo-os a suas pátrias/vilarejos). Sendo assim os pobres eram parte constituinte da sociedade – eram cidadãos de fato e de direito.

A identidade do pobre se dava a partir de sua historicidade local, familiaridade e fraternidade coletiva. Por ainda nos referirmos ao período pré-Revolução Industrial tais características eram notórias. As pessoas tinham nos vilarejos suas colônias, a terra lhes fornecia tudo que necessitavam para a sobrevivência, a quantidade de filhos amenizava o ardor da vida rural e ao mesmo tempo consolidava fraternidades (solidariedade), que se expandiam para vilarejos próximos. Por esta razão, o Estado entendia que os pobres eram de responsabilidade regional/local (provinciana).

Obviamente que as províncias não suportariam a pressão da iminente industrialização e que o pobre seria um entrave nesta nova formatação social de ordem produtiva. Por esta razão, as leis faziam valer o caráter de cidadania dos pobres, tentando fortalecer a perspectiva de que o pobre é um cidadão imergente de um grupo social. Sendo, portanto, de responsabilidade coletiva a assistência ao pobre. Contudo, o cenário social (cultural) mudaria drasticamente com o advento do Capitalismo e Revolução Industrial. Tornando o pobre um ser desconexo com a sociedade local, desprovido de legitimação social e desmoralizado culturalmente. Legitimiza-se o Capitalismo como Religião levando as pessoas à “casa do desespero”, como critica Walter BENJAMIN (2013) – texto inicialmente escrito em meados de 1921.

A figura do pobre deixa de ser um tabu religioso teocêntrico, mas também agora deixa de ser um cidadão com historicidade social-política. O pobre desfigura-se nestes dois momentos históricos e reconfigura na contemporaneidade como um ser criminalizado, inferiorizado, desvirtuoso e incapaz. Neste estado de completa rendição ao capital, o pobre se personifica com ausência de virtudes individuais, promiscuidade, vadiagem, incompetência, preguiça, criminalidade e vagabundagem. Como adverte WILLIAMS (2007, p. 28): “O pobre não é mais visto como um próximo, sendo, então, transformado em estranho, perigoso e indesejável. Nesse período, o pobre foi identificado com a figura do vagabundo, que se transforma no elemento central da representação da pobreza e dos pobres pelas classes dominantes”.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 06 de Novembro de 2014]


::Referências Bibliográficas::
ALBERT, Michel. Capitalismo versus Capitalismo. São Paulo, SP: Fundação FIDES, 1992.
BENJAMIN, Walter. O Capitalismo como Religião. São Paulo, Boitempo, 2013.
BLASS, Leila Maria da Silva (org). Ato de trabalhar: imagens e representações. São Paulo: Annablume, 2006.
CASSAB, Maria Aparecida Tardin. Jovens pobre e o futuro – a construção da subjetividade na instabilidade e incerteza. Niterói: INTERTEXTO, 2001.
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
DOWBOR, Ladislau. Formação do Terceiro Mundo. 15 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
FELTRAN, Gabriel de Santis. Desvelar a Política na Periferia: Histórias de Movimentos Sociais em São Paulo. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005.
GIANNOTTI, Vito. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.
HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.
HOGGART, Richard. As Utilizações Da Cultura – aspectos da vida cultural da classe trabalhadora. 1° Volume. Lisboa: Editorial Presença, 1973.
HUNT, E. K. e LAUTZENHEISER, Mark. História do Pensamento Econômico. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.
MARTINS, José de Souza. Exclusão Social e a Nova Desigualdade. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1997.
MOLLAT, Michel. Os pobres na Idade Média. São Paulo. 1989.
NETTO, Edméia Corrêa. Profissão: assistente social. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.
REZENDE FILHO, Cyro de Barros. Os pobres na Idade Média: de minoria funcional a excluídos do paraíso. Revista Ciências Humanas. Universidade de Taubaté (UNITAU), Taubaté, v. 1, n. 1, p. 1-9. 2009.
SCHWARTZMAN, Simon. As causas da pobreza. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
SUSSEKIND, Flora. O Brasil não é Longe Daqui: o Narrador, a Viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
TELLES, Vera da Silva. Direitos Sociais: Afinal, de Que se Trata? Revista USP. São Paulo: USP, n° 37, pp. 34-45, mar./maio 1998.
TELLES, Vera da Silva. Pobreza e Cidadania. São Paulo: USP, 2001.
TELLES, Vera da Silva. Pobreza e Cidadania: Dilemas do Brasil Contemporâneo. Caderno CRH. Salvador: UFBA, vol. 6, n° 19, pp. 8-21, jul./dez. 1993.
WILLIAMS, Ava Renarda. O Caráter Multifacetado da Pobreza: a relação entre concepção e intervenção. 2007. 162 f. Dissertação (Mestrado em Política Social) - Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2007.
ZALUAR, Alba. Integração Perversa: pobreza e tráfico de drogas. Editora FGV, 2004.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

A infantilização do raciocínio nas universidades


“Criamos a época da velocidade, mas senti-mo-nos enclausurados dentro dela. Os nossos conhecimentos tornaram-nos cépticos”.
Charles Chaplin (1889-1977)

Os estudiosos da educação, especialmente no que se refere ao processo de concentração e cognição, defendem que na medida em que a pessoa vai crescendo sua capacidade de percepção/reflexão tende a expandir. Então, espera-se que a capacidade de concentração de uma criança de quatro anos seja mui diferente da de um adulto de 25 anos. Espera-se que uma criança de dois anos não tenha, ainda, condições de se interessar por assuntos complexos/conceituais, diferentemente de um adulto de 35 anos de idade. Espera-se que haja um amadurecimento gradual na medida em que a idade vai passando, e na medida em que vai se progredindo nas fases escolares. Espera-se que a capacidade de produção de texto, e a então capacidade crítica, seja desenvolvida ao longo do processo educacional. Espera-se que o aluno universitário seja mais interessado em aprender que um adolescente. Espera-se... e tão somente espera-se, pois a realidade tem desnudado um outro contexto (triste, vergonhoso e ascendente).

Nesta última década tenho trabalhado exclusivamente com a educação superior, e por puro (e conclusivo) empirismo afirmo que o nível dos alunos regrediu. O que tenho visto são verdadeiros “Benjamin Button” da educação – quanto mais envelhecem, mais se tornam crianças. Acredito que não estou sozinho nesta percepção. O professor Pierluigi Piazzi e o professor Sergio Cortella endossam está perspectiva (assista vídeos destes professores no YouTube). Os alunos estão chegando às universidades com menor capacidade crítica, com ausência de criatividade, com preguiça de pensar, com desdenho com a leitura, com morbidez na produção de texto, com déficit de respeito ao professor, com desprezo ao conhecimento e com carência emotiva. Este coquetel do mal tem tornado a sala de aula um lugar totalmente infantilizado.

O nível dos alunos piorou. Atualmente os alunos universitários não conseguem prestar atenção na aula (ou em estudos extraclasse) mais do que 15 minutos - equivalente à capacidade de concentração de uma criança no jardim de infância. Após este breve período os professores tem que valer-se de dinâmicas (nome pomposo para tornar lúdico o processo, comprovando a infantilização da educação superior). Os alunos são muito impacientes e tem muita dificuldade de completar uma tarefa - características de crianças de aproximadamente quatro anos de idade. Por isto, muitas atividades em classe ficam para casa (não é que não tenha tempo para fazer uma atividade, a verdade é que os alunos não estão tendo capacidade de fazer a atividade). Os alunos universitários não sabem lidar com conceitos abstratos (teorias/saberes), tudo têm que ser pragmático, visível, útil, imediato e concreto – atitudes estas que se assemelham a uma criança de seis anos de idade que ao se inserir no contexto escolar tem que começar a aprender a lidar com o abstrato (questões metafísicas, noções de tempo, espaço, pensamentos).

O nível dos alunos piorou. Atualmente os alunos da educação superior são facilmente irritáveis e terrivelmente emotivos – como crianças que não aceitam ser contrariadas. Assim ficam emburradas, fazem biquinhos e franzem a testa. Os alunos exigem respeito sem se darem ao respeito – irritam todos (especialmente ao professor), mas quando o irritam fica enraivecido e acha que é bullying, coisa de criança mimada que não tem noção de seus atos. Os alunos fazem da sala de aula uma sala de bate papo, onde silêncio é adjetivo raro – é tipo crianças que não conseguem ficar quietas, a não ser quando estão assistindo desenho da Peppa Pig. Os alunos estão indo para as faculdades para medir força bruta, se possível com o professor, com fins a desmoralizar estes educadores – são como adolescentes que por qualquer besteira querem brigar para se mostrar para os da sua gangue, a sala se tornou um octógono de MMA. Os alunos estão se desenvolvendo na técnica da fofoca conceitual, insistindo em falar mal de um professor para o outro professor, ou entre aluno-aluno – atitudes de características teen que denunciam a imaturidade destes novéis acadêmicos.

A educação superior no Brasil está sofrendo de um retrocesso intelectual e emocional, estamos presenciando uma infantilização da universidade. E a semelhança da técnica (senso-comum) para se matar sapos lentamente (coloque-o na água fresa e vai se esquentando gradativamente até o sapo morrer), estamos num caldeirão fervente, mas com sensação de água morna. De um lado os alunos se iludindo que estão aprendendo e não percebendo o quão infantis estão sendo. Do outro lado os professores que se renderam a esta nova condição de infantilização. O resultado é previsível: diplomas que não vale nada, conhecimentos desconexos, faculdade desmoralizada, saberes perdidos, professores cansados e donos de faculdades enriquecendo.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 21 de Outubro de 2014]

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Eu escolhi não votar


“O Estado é a organização económico-política da classe burguesa. O Estado é a classe burguesa na sua concreta força atual”.
Antonio Gramsci (1891-1937) 

A lenda mater que orbita no eixo do Sistema Governamental Brasileiro (independente de partido) é tentar convencer os tupiniquins que o voto obrigatório (e secreto) é o maior ato civilizatório e democrático que um cidadão pode ter. De fato isto ao fim, tristemente, se mostra como verdade, pois o único momento que nos travestimos de cidadãos é em épocas de eleições. Nos demais meses, em solos brasilianos, a cidadania é refém de direitos que são facilmente burlados, as ações comunitárias são financiadas partidariamente pelo Governo, os movimentos sociais se rendem ao poder, as escolas são enquadradas nas padronizações internacionais e os políticos alcançam foro privilegiado.

A eleição no Brasil, no formato e nas intencionalidades atuais, revela o quanto somos ultrapassados (leia-se manipulados). Todo o processo político brasileiro está desajustado frente à realidade contemporânea. Precisamos reaprender a politizar. Para tanto, primeiramente seria necessário desconfigurar a política como uma profissão (em termos lato sensu). O político seria um cidadão voluntário que quer lutar pelas causas sociais e coletivas. Para que isto se torne possível é preciso retirar o atrativo (abusivo) salário – até 1977 os vereadores no Brasil não eram remunerados. Tal prática é comum em vários países da Europa e Américas (México, França, Suíça, para citar alguns).

De todos os 181 países que integram a ONU (Organização das Nações Unidas), somente o Brasil remunera os vereadores. Estima-se que anualmente, no Brasil, o custo dos parlamentares, apenas referente a salários (fora benefícios intermináveis), é de aproximadamente R$ 11 bilhões de reais. Enquanto ser político for altamente atrativo no quesito financeiro não restará espaço para gente boa se interessar pelo assunto social-coletivo, pois estes serão sufocados pelos gananciosos cidadãos que fazem da política um forma de se enriquecer rapidamente (leia-se desvio de verbas). Uma ajuda de custo seria o suficiente para as despesas deste cidadão-político que representa os outros. Política tem que ser vocação, não profissão.

Uma segunda desorientação que se faz necessário é que o voto não seja obrigatório. Há várias pesquisas que tem comprovado que as pessoas votam porque são obrigadas, do contrário não se achegaria a este bacanal tupiniquim. A Folha de São Paulo publicou recentemente (11/05/2014) que 61% dos brasileiros são contra a imposição do voto. Se votar fosse, então, nosso ato sublime de cidadania, como propõem o Governo, deveria ser respeitado o direito de não querem votar – ainda mais sabendo que a maioria dos brasileiros não concorda com tal medida. Os que defendem o voto obrigatório são dois tipos: a) os que foram contaminados com a ilusão de que votar é um ato de democracia – estes apenas reproduzem o discurso do Governo; e, 2) os que vão se beneficiar com a eleição de outrem – este votam não por causa das propostas, mas sim pela barganha (vulgarmente: “mamar nas tetas do governo”).

Outra desorientação (terceira) que precisamos levar em consideração é que o voto não pode ser secreto. Se é democrático, não justifica ser secreto. Se supostamente fora feito por livre espontânea vontade, não carece de se esconder a escolha. Alguns poderiam argumentar que é secreto para proteger as pessoas. Entretanto, se precisa proteger, então, denuncia que há algo de errado no processo (existe um opressor). O voto precisava ser aberto, para que democraticamente pudéssemos ser avaliados e avaliar a partir de nossas escolhas. O voto secreto só favorece os corruptos que se valem do anonimato para se privilegiarem ou manipularem os indefesos cidadãos.

Há ainda mais desorientações que necessitam serem postuladas (quarta). Para que as eleições sejam de fato um ato democrático é preciso que se ultrapasse o dia da votação. É preciso criar uma forma de a população intervir/acompanhar os políticos durante o mandato e, se quiserem, terem o direito de retirar o voto dado há um determinado político. Isto sim seria cidadania e democracia. Contudo, novamente alguém poderia argumentar que isto instauraria o caos, provocando várias mudanças em pouco tempo, impedindo a continuidade das ações governamentais. Entretanto, se o povo se arrepende do voto em pouco tempo, então, nada mais democrático que permitir a alteração. E mais, a falácia da possível descontinuidade de projetos/ações não aconteceria por causa da mudança de políticos, pois tal descontinuidade já acontece nos mandatos normais, inclusive nas reeleições.

A quinta desorientação que aqui proponho é que seja feita uma reformulação total na forma de eleições no Brasil ao ponto de não precisarmos votar em pessoas, mas em projetos. Não entenda que há alguma resistência a pessoa enquanto gente. De forma alguma. Contudo, desta forma, eliminaríamos os coronéis-políticos que se sentam nos tronos da nação e usam a máquina governamental para continuarem suas monarquias eleitas. Além do que, se as eleições fossem tipo um licitação aberta, evitaríamos ter a necessidade de partidos políticos, que nos últimos anos só polarizaram cegamente as discussões políticas e dividiram passionalmente ainda mais a nação. Não precisamos de partidos políticos e não precisamos de pessoas (coronéis-carismáticos), o que precisamos é de projetos de gente da gente, de cidadãos que vivem as realidades brasilianas. Assim conseguiríamos ter ações direcionadas, específicas, desburocratizadas e desmonetizadas.

Por fim, uma última (sexta) desorientação que me permito propor é que se democratize o horário eleitoral gratuito que se encena na televisão. Não é nada democrático um candidato ter 15 minutos para expor seus cantos da sereia, enquanto outro tenho 2 minutos para expor suas cantigas. Se é para democratizar, que então comecemos pelo horário eleitoral gratuito, dispondo igualmente os tempos. E vou mais além, que haja as mesmas condições de produção de propaganda eleitoral, não é nada democrático um candidato ter recursos para contratar a melhor equipe de marketing e ou outro candidato ter que fazer seu programa com câmeras amadoras – isto é desleal, injusto e antidemocrático, além de não ser sincero com os cidadãos que ficam sempre a assistir.

Eu escolhi não votar, pelo menos não conforme os padrões do moderno-arcaico Brasil, mas não tinha esta opção para mim. Afinal, de fato, tenho que contentar toda a minha cidadania e democratização numa eleição. Minimizando minha participação pública num clique de urna. Ridicularizando minha racionalidade na escolha de políticos. Tristemente, somos todos obrigados a escolher alguém, mesmo que não se tenha alguém competente. No meu imaginário apolítico não vejo perspectiva de redenção na política brasileira, estamos contaminados com um vírus que já faz parte de nosso DNA, somos indivisíveis com nosso câncer. Portanto, me rendo, relutantemente, ao convite da auto-gestão – quem sabe assim poderemos encontrar uma vida mais simples, solidária e descapitalizada.

Ps.: tudo isto são delírios utópicos de um cidadão que se cansou da patifaria da política brasileira.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 02 de Outubro de 2014]

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Mudando as mudanças


"Aceitar-me plenamente? É uma violentação de minha vida. Cada mudança, cada projeto novo causa espanto: meu coração está espantado”.
Clarice Lispector (1920 – 1977)

O extremismo humano é uma característica assustadora que, ironicamente, cada vez mais tem caracterizado a modernidade tardia. A falta de equilíbrio e a ausência de fundamentação (enraizamento) têm conduzido incontáveis pessoas a viverem inúmeras crises de identidade, ou pelo menos denuncia uma busca por identidades. Categoricamente pode-se ponderar que alguns vivem no comodismo, outros no modismo e ainda existem alguns que se constroem a partir dos alicerces no mudancismo (neologismo apropriado para conceituar os apaixonados por mudanças - de qualquer gênero, razão ou por pura diversão). Os adeptos ao mudancismo são aqueles que mudam tanto que sempre acabam voltando para o mesmo lugar - mesmo que não percebam e não queiram.

As mudanças fazem parte da jornada de qualquer um. As mudanças são necessárias. Entretanto, é válido arrazoar que tanto o viver acomodado quanto o orbitar irracionalmente na arte de sempre mudar são raízes do mesmo mau, quase sempre caracteriza apenas como um modismo temporal. Então, percebe-se notoriamente uma guerra político-teórica-praxiológica entre ambos, disputando algo que jamais pertencerá a nenhum dos dois grupos. Busca-se a singularidade, mas se todos fazem, perde-se. Procura-se originalidade, mas se é influenciado por outrem, confunde-se. Necessita-se de identidade, mas somos seres inconclusivos, muda-se. Por esta razão, tomar uma decisão, ainda que conscientemente errada, só para diferenciar dos demais é aderir ao movimento do mudancismo.

É preciso caminhar mudando as mudanças para não viver acomodado com as mudanças. Mesmo que ainda o que reste é incorporar o estado de “agentes de mudanças”, como que num soluço existencial tateando superar a crise de identidade e/ou a carência afetiva (e efetiva). Portanto, mudar não deve fundamentar a vida. Contudo, faz-se necessário fundamentar as mudanças da vida – mesmo sabendo que há uma incompletude de saber o que a nós acontece. É impreterível que imerja-se nas mudanças a partir de um por que, mesmo que não se tenha um porquê. Seguir mudando sempre é acomodar-se com as mudanças, e sendo assim perde-se a bela singeleza das mutações tão altivamente defendidas. Ao acostumar-se em nunca ser corriqueiro percebe-se, um dia desses, que sutilmente apenas aderiu-se a rotina de não ter rotinas – mudancismou-se a si mesmo.

Nunca entenderemos efetivamente o valor das mudanças com as quais aderimos tão calorosamente, porém uma coisa é intransponível por nossa ignorância: não conseguimos ser os mesmos mais que um milésimo de segundo consecutivo. Então, mudar é natural e inerente a vida, não precisamos forçar os tempos, acreditando sermos construtores de nossas próprias histórias inéditas. Reconheçamos que somos tipo uma jangada existencial num incerto mar enfurecido. Sendo assim, mudanças virão (e que sabe até alguns viram), não precisamos aderir ao mudancismo para reafirmar nossa autonomia antropológica. Somos seres mudáveis por definição.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 15 de Junho de 2005]