"A propriedade privada introduz a desigualdade entre os homens, a diferença entre o rico e o pobre, o poderoso e o fraco, o senhor e o escravo, até a predominância do mais forte. O homem é corrompido pelo poder e esmagado pela violência".
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)
No
dia 22 de Fevereiro de 2010, a Organização das Nações Unidas (ONU), apresentou
um relatório no Fórum Mundial de Habitação (Rio de Janeiro, Brasil), baseado no
Índice Gini[1].
No citado relatório a cidade de Goiânia foi apontado como uma das quatro
cidades com maior índice de desigualdade social do País e a 10ª com maior
desigualdade na distribuição de renda no Mundo. Cecília Martinez, em publicação
feita pela Assembléia Legislativa do Estado de Goiás, destacou que “o estudo realizado
não mede crescimento econômico e sim de desigualdades. É muito comum um local
com grande desenvolvimento econômico apresentar por consequência aumento na
desigualdade social (...) as cidades estão em constante movimento e devem
acompanhar estas mudanças e oferecer condições e oportunidades à sua população.
O que o relatório fez não foi medir se as cidades são melhores ou piores, e sim
se estão sendo capazes de acompanhar suas mudanças dando oportunidades ao seu
povo (...) os problemas do mundo estão se tornando estritamente urbanos e por
isso a importância do estudo realizado pela ONU que permite acompanhar como as
cidades estão evoluindo”[2].
O ritmo de
produção acelerada proposto pela Revolução Industrial (século XVIII e XIX), que
ainda ganha evidência no cenário urbano contemporâneo, provoca uma antiga
discussão sobre a desumanização do homem social em prol do acumulo de capital
individual. Vera da Silva TELLES adverte: “...a questão social é a aporia das
sociedades modernas que põe em foco a disjunção, sempre renovada, entre a
lógica do mercado e a dinâmica societária, entre a exigência ética dos direitos
e os imperativos de eficácia da economia, entre a ordem legal que promete
igualdade e a realidade das desigualdades e exclusões tramada na dinâmica das
relações de poder e dominação” (1996, p. 85). A cidade de Goiânia foi
historicamente se aculturando neste “novo” formato de distribuição de renda –
que como denunciado pelo relatório da ONU-Habitat, não está sendo
distribuído, mas sim acumulado por alguns. Por conseguinte, no outro extremo,
estão sendo sucumbidos a pobreza, e suas variáveis socioeducacionais, um número
considerável de pessoas na Capital Goiana, gerando a desigualdade social.
No Jornal Opção, em 15 de Setembro de 2012,
o pesquisador do tema da desigualdade social, o professor e cientista social
Dijaci David de Oliveira, da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade
Federal de Goiás (UFG), comenta que: “Na verdade, a desigualdade social
cresceu desde a década de 1970, quando não fez a distribuição das riquezas
(...) O governo Lula corrige parte desse equívoco quando aposta nos programas
de transferência de renda e em ações afirmativas (...) As empresas [em Goiânia] têm geralmente poucos empregados
e são, em muitos casos, familiares. Os dividendos acabam distribuídos de forma
doméstica (...) Os mais ricos poderiam distribuir melhor suas riquezas, têm
margens de lucros imensas. Em vez disso, sonegam o que podem e concentram
(riquezas) mais ainda, ao não pagar bem seus trabalhadores; como se não
bastasse, ainda terceirizam o que for conveniente, precarizando as relações de
trabalho (...) A transferência de renda não deve ser exclusividade do poder
público”[3] – destaque do autor.
O
jornalista Nelcivone Melo, do Diário de
Goiás, em 18 de Março de 2014, detalha estatisticamente sobre o acumulo de
riquezas em Goiânia, e explica que: “O índice de Gini é calculado por uma
fórmula que compara os 20% mais pobres da população com os 20% mais ricos. Em
Goiânia os 20% mais pobres detém apenas 3,34% da riqueza e os 20% mais ricos
63,06% - dados de 2010 (...) Na minha opinião o melhor a ser feito é
intensificar os investimento em educação construindo novas escolas e melhorando
a qualidade do ensino em todos os níveis. Não basta erradicar o analfabetismo,
é preciso também aumentar o tempo de permanência nas escolas e aumentar o tempo
de escolaridade. É sabido que existe uma relação direta entre a escolaridade e
a renda”[4]. O professor João Batista
de Deus, professor do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa), da
Universidade Federal de Goiás (UFG), referindo-se aos dados apresentados pela
ONU-Habitat, também defende que há uma relação estreita entre desigualdade
social e nível educacional: “Como os adultos pobres que moram em Goiás, em
geral, têm pouca qualificação profissional, é preciso, além das ações de
governo que já visam reduzir essas discrepâncias, investir nas escolas. Temos
de ter como meta salvar a geração seguinte e a educação é fundamental”[5].
As causas
da desigualdade social tem sua relação estreita entre educação e pobreza.
Contudo, fazer desta questão uma panaceia social não constitui em ato revelador,
nem consensual. Como propõem o sociólogo brasileiro Simon SCHWARTZMAN, que após
interpretar os resultados de um estudo Delphi[6] com 50 especialistas e 32
autoridades educacionais, ponderou que: “Intuitivamente, pode parecer óbvio
que, nas sociedades que podem proporcionar uma boa educação básica a todas as
pessoas, existe mais igualdade de oportunidades. Há forte evidência de que as
diferenças em educação são o principal correlato da desigualdade de renda, e
que os países com pouca educação são, normalmente, os mais desiguais
socialmente. No entanto, se não existe novas oportunidades de trabalho, a expansão
da educação pode funcionar simplesmente como um mecanismo para distribuir os
postos existentes de acordo com as credenciais educacionais dos candidatos,
credenciais estas que dependem, por sua vez, do capital cultural e dos recursos
financeiros dos estudantes e suas famílias. Uma oferta maior de oportunidades
educacionais pode reduzir o valor das credenciais, mas não levaria, por si só,
à criação de riqueza adicional” (2004, p. 152).
As
mudanças constantes no cenário econômico, educacional, social, político e
cultural, tanto no âmbito nacional quanto no internacional, estão se dando numa
velocidade descompassada frente ao ritmo de crescimento/desenvolvimento da
cidade de Goiânia – “distanciando” os ricos dos pobres, mas fazendo-os viverem
no mesmo espaço geográfico. Tal realidade pode ter como hipótese aceitável o fato migratório, como
defendido por Elder Dias no Jornal Opção (citado
anteriormente): “Goiânia é uma cidade atraente. Nas estatísticas, está entre as
capitais já consideradas consolidadas — excetuam-se as de Estados que eram
territórios ou criados recentemente, como Palmas, no Tocantins —, que mais
atraem para si uma enorme população, boa parte de outros Estados. Esse
contingente vem em busca de melhores condições de vida, cada um a seu modo. Mas
não só de pobres se constitui essa massa: há também, por exemplo, executivos de
grandes empresas e indústrias da região metropolitana e de outras cidades. O
grande desenvolvimento do Estado nas últimas décadas possibilitou também esse
outro tipo de fluxo migratório (...) Goiânia virou parada tanto para quem está
em situação cômoda financeiramente como para gente que vem tentar a sorte”[7].
Segundo
a PNAD (Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio, desenvolvida pelo IBGE),
em 2009[8], em termos absolutos, São
Paulo é o Estado que mais recebeu imigrantes (535 mil), seguido de Minas Gerais
(288 mil), Goiás (264 mil), Bahia e Paraná (ambos com 203 mil novos
imigrantes). Entretanto, no que tange ao Índice de Eficácia Migratória, Goiás é
o maior entre todos os Estados da Federação, com 0,32 – este Índice é a
diferença entre a quantidade de pessoas que entraram no Estado (imigrantes) e
as que saíram (emigrantes). Portanto, Goiás é o Estado com maior percentual no
saldo líquido migratório - sendo que São Paulo apesentou um Índice de (-) 0,05,
e Minas Gerais 0,02. Agravando este discurso, pensando especificamente no lado
que personifica os imigrantes pobres em Goiânia, o jornalista Jackson Abrão, no
Jornal Bom Dia Goiás[9],
exibido em 21 de Março de 2014, acrescenta que o perfil migratório (dos pobres)
para Goiânia é basicamente de pessoas com baixa renda, baixa qualificação e
baixo nível educacional. Elementos estes que potencialmente impelem pessoas
para a criminalidade.
Na
reportagem de Alfredo Junqueira, publicada pelo Estadão, em 20 de Março de 2010, registra a mesma preocupação: “na
avaliação do coordenador do relatório e diretor do Centro de Estudos e
Monitoramentos das Cidades do Programa da ONU para os Assentamentos Humanos
(ONU-Habitat), o mexicano Eduardo Lopez Moreno, existe vínculo direto entre
desigualdade e criminalidade”[10]. Segundo um estudo feito
pela Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência, com o título: “Avanço da criminalidade nos centros urbanos: análise das causas da
violência e falta de segurança em Goiânia”, escrito por Fernanda Bueno
Penha, Carolini Bueno Penha e Josimar Gonçalves da Silva, apresentam as
seguintes estatísticas e considerações sobre a criminalidade na Capital Goiana:
“O trafico de drogas, crimes relacionados a acerto de contas e ao consumo de
álcool são os principais motivos que levam a capital goiana a ocupar o 17º
lugar no ranking de números absolutos das cidades mais violentas, com taxa de
homicídio de 44,3 casos por 100 mil habitantes (...) Pobreza, precariedade de
condições de vida, desigualdade social e densidade populacional costumam ser
apontados como possíveis causas para a violência. Com base no exposto, a cidade
de Goiânia está sujeita a ocorrência maior do crime de homicídio, considerando
o aumento da população em área sem infra-estrutura...”[11].
É
necessário reiterar, como defendido por Vera da Silva TELLES, professora
livre-docente do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, no
livro “Nas tramas da cidade – trajetórias urbanas e seus territórios” (2006),
que não se faça o juízo preconcebido de uma criminalização da pobreza. É
imprescindível que se analise todas as variáveis histórico-culturais que
fomentam a criminalidade urbana e seus desdobramentos de territorialidade.
Igualmente, no que tange a pobreza, é mister que se compreenda os fatores de
impelem as pessoas a um estado de ausência/recessão do capital, comumente
denominado de pobreza. Entrelaçar e condicionar a criminalidade ao estado de
pobreza é minimizar os reais problemas estruturais da sociedade que mantem o
atual sistema capitalista. Então, criminalidade não é uma questão exclusiva de
classe social. Reafirmando tal preocupação, as autoras Juliana Daibert e Ana
Lúcia Rodrigues apud Paulo César BONI
(2011) afirma que as grandes mídias fortalecem o estereótipo de
pobreza-criminalidade, o que reforça as hierarquias já estabelecidas e
sedimenta um consenso em torna da temática.
O
chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Assistência Social, Jefferson
Coelho Lopes, representante do prefeito de Goiânia, Paulo Garcia, apresentou um
defesa frente ao relatório da ONU-Habitat, contra-argumentando que: “...acredito
que nos próximos anos, se continuarmos no mesmo caminho, Goiânia estará como
uma das melhores cidades em termos de desigualdade social. Estamos combatendo a
fome e a pobreza, e isto irá mudar esta realidade, comentou”[12]. Neste ínterim se passaram
quatro anos (2010-2014), e a discussão continua distante de uma resolução
prática. Então, como que num sussurro dos que vivem em Goiânia, emerge
ponderações como a do Rapper[13] Goiano, Dener Cordeiro de
Paula[14] (ou “Renedy”, nome
artístico), de apenas 20 anos, que escreve na música “reflexão”, as seguintes
provocações: “Você se importa com coisas inúteis, | E ás vezes não vê, | Perde
o próprio raciocínio, | Sem perceber. | Ajuda
um desconhecido, | A ganhar milhões na TV, | Se esquecendo que várias famílias
| Não tem o que comer. | Por quê? Nossa mente, | É tão fácil de se perder, |
(...) | Mas Não, ser humano, | Quer aumentar seu cachê, | Agride seus
princípios | Pra tentar se desenvolver. | (...) | Mas a questão é que a paz sem
justiça, é ilusão. | (...) Faça você mesmo, sua própria reflexão”.
Por fim, o
questionamento de David HARVEY (2005) continua a ecoar, retoricamente, sem
resposta pelas ruas e avenidas de Goiânia: Será que é possível se chegar a uma
forma de organização social que garanta uma distribuição justa do produto
social entre capital e trabalho, uma organização que também dê, ao trabalhador
oportunidades de educação e progresso pessoal? Como podem ser reconciliados
esses interesses opostos?
Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 29 de Março de 2014]
[1] O Índice Gini é um
instrumento para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo,
foi criado pelo matemático italiano Corrado Gini (1884-1965).
[2] Disponível em:
<http://al-go.jusbrasil.com.br/noticias/2185679/desigualdade-social>
Acesso em: 26 de Março de 2014.
[3] Disponível em: <http://www.jornalopcao.com.br/posts/reportagens/os-extremos-se-encontram-em-goiania>
Acesso em: 26 de Março de 2014.
[4] Disponível em:
<http://diariodegoias.com.br/opiniao/5368-goiania-o-indice-de-gini-e-a-desigualdade-social>
Acesso em: 26 de Março de 2014.
[5] Disponível em
<http://www.ascom.ufg.br/pages/13084-goiania-e-10-mais-desigual-no-mundo>
Acesso em: 27 de Março de 2014.
[6] Estudo Delphi é foi usada pela primeira vez pela
Instituição RAND nos anos 50 para ajudar a força aérea dos EUA a identificar a
capacidade que os soviéticos tinham para destruir alvos estratégicos
americanos. Delphi é uma metodologia científica que permite analisar dados
qualitativos.
[7] Disponível em:
<http://www.jornalopcao.com.br/posts/reportagens/os-extremos-se-encontram-em-goiania>
Acesso em: 26 de Março de 2014.
[8] Disponível em : <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2009/pnad_sintese_2009.pdf>
[9] Disponível em: <http://globotv.globo.com/tv-anhanguera-go/bom-dia-go/v/jackson-abrao-comenta-o-alto-indice-de-desigualdade-social-em-goiania/3228434/>
Acesso em: 27 de Março de 2014.
[10] Disponível em:
<http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,goiania-e-a-cidade-mais-desigual-do-brasil,526930,0.htm>
Acesso em : 26 de Março de 2014.
[11] Disponível em:
<http://www.sbpcnet.org.br/livro/63ra/resumos/resumos/3652.htm> Acesso:
27 de Março de 2014.
[12] Disponível em: <
http://al-go.jusbrasil.com.br/noticias/2185679/desigualdade-social> Acesso
em: 26 de Março de 2014.
[13] O Rap é um discurso rítmico com rimas e poesia,
surgido na Jamaica nos anos 60 e popularizada pelos negros de periferia dos
estados Unidos no final do século XX. A linguagem do Rap é demasiadamente
difundida entre as classes pobres e serve como instrumento de crítica e
reflexão.
[14] Dener Cordeiro de Paula é aluno da UNIP em Goiânia
(Go), no curso de Administração. Para conhecer mais o trabalho musical dele acesse:
https://soundcloud.com/renedy10
::Referências Bibliográficas::
BONI, Paulo César (org). Fotografia: múltiplos olhares. Londrina: Midiograf, 2011.
HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.
SCHWARTZMAN, Simon. As causas da pobreza. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
TELLES, Vera da Silva e CABANES, Robert (org). Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Associação Editorial Humanistas, 2006.
TELLES, Vera da Silva. Questão Social: afinal do que se trata? São Paulo em Perspectiva, vol. 10, n. 4, out-dez/1996. p. 85-95.