sábado, 29 de março de 2014

O acumulo de capital e a desigualdade social em Goiânia


"A propriedade privada introduz a desigualdade entre os homens, a diferença entre o rico e o pobre, o poderoso e o fraco, o senhor e o escravo, até a predominância do mais forte. O homem é corrompido pelo poder e esmagado pela violência".
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)

No dia 22 de Fevereiro de 2010, a Organização das Nações Unidas (ONU), apresentou um relatório no Fórum Mundial de Habitação (Rio de Janeiro, Brasil), baseado no Índice Gini[1]. No citado relatório a cidade de Goiânia foi apontado como uma das quatro cidades com maior índice de desigualdade social do País e a 10ª com maior desigualdade na distribuição de renda no Mundo. Cecília Martinez, em publicação feita pela Assembléia Legislativa do Estado de Goiás, destacou que “o estudo realizado não mede crescimento econômico e sim de desigualdades. É muito comum um local com grande desenvolvimento econômico apresentar por consequência aumento na desigualdade social (...) as cidades estão em constante movimento e devem acompanhar estas mudanças e oferecer condições e oportunidades à sua população. O que o relatório fez não foi medir se as cidades são melhores ou piores, e sim se estão sendo capazes de acompanhar suas mudanças dando oportunidades ao seu povo (...) os problemas do mundo estão se tornando estritamente urbanos e por isso a importância do estudo realizado pela ONU que permite acompanhar como as cidades estão evoluindo”[2].

O ritmo de produção acelerada proposto pela Revolução Industrial (século XVIII e XIX), que ainda ganha evidência no cenário urbano contemporâneo, provoca uma antiga discussão sobre a desumanização do homem social em prol do acumulo de capital individual. Vera da Silva TELLES adverte: “...a questão social é a aporia das sociedades modernas que põe em foco a disjunção, sempre renovada, entre a lógica do mercado e a dinâmica societária, entre a exigência ética dos direitos e os imperativos de eficácia da economia, entre a ordem legal que promete igualdade e a realidade das desigualdades e exclusões tramada na dinâmica das relações de poder e dominação” (1996, p. 85). A cidade de Goiânia foi historicamente se aculturando neste “novo” formato de distribuição de renda – que como denunciado pelo relatório da ONU-Habitat, não está sendo distribuído, mas sim acumulado por alguns. Por conseguinte, no outro extremo, estão sendo sucumbidos a pobreza, e suas variáveis socioeducacionais, um número considerável de pessoas na Capital Goiana, gerando a desigualdade social.

No Jornal Opção, em 15 de Setembro de 2012, o pesquisador do tema da desigualdade social, o professor e cientista social Dijaci David de Oliveira, da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG), comenta que: “Na verdade, a desigualdade social cresceu desde a década de 1970, quando não fez a distribuição das riquezas (...) O governo Lula corrige parte desse equívoco quando aposta nos programas de transferência de renda e em ações afirmativas (...) As empresas [em Goiânia] têm geralmente poucos empregados e são, em muitos casos, familiares. Os dividendos acabam distribuídos de forma doméstica (...) Os mais ricos poderiam distribuir melhor suas riquezas, têm margens de lucros imensas. Em vez disso, sonegam o que podem e concentram (riquezas) mais ainda, ao não pagar bem seus trabalhadores; como se não bastasse, ainda terceirizam o que for conveniente, precarizando as relações de trabalho (...) A transferência de renda não deve ser exclusividade do poder público”[3] – destaque do autor.

O jornalista Nelcivone Melo, do Diário de Goiás, em 18 de Março de 2014, detalha estatisticamente sobre o acumulo de riquezas em Goiânia, e explica que: “O índice de Gini é calculado por uma fórmula que compara os 20% mais pobres da população com os 20% mais ricos. Em Goiânia os 20% mais pobres detém apenas 3,34% da riqueza e os 20% mais ricos 63,06% - dados de 2010 (...) Na minha opinião o melhor a ser feito é intensificar os investimento em educação construindo novas escolas e melhorando a qualidade do ensino em todos os níveis. Não basta erradicar o analfabetismo, é preciso também aumentar o tempo de permanência nas escolas e aumentar o tempo de escolaridade. É sabido que existe uma relação direta entre a escolaridade e a renda”[4]. O professor João Batista de Deus, professor do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa), da Universidade Federal de Goiás (UFG), referindo-se aos dados apresentados pela ONU-Habitat, também defende que há uma relação estreita entre desigualdade social e nível educacional: “Como os adultos pobres que moram em Goiás, em geral, têm pouca qualificação profissional, é preciso, além das ações de governo que já visam reduzir essas discrepâncias, investir nas escolas. Temos de ter como meta salvar a geração seguinte e a educação é fundamental”[5].

As causas da desigualdade social tem sua relação estreita entre educação e pobreza. Contudo, fazer desta questão uma panaceia social não constitui em ato revelador, nem consensual. Como propõem o sociólogo brasileiro Simon SCHWARTZMAN, que após interpretar os resultados de um estudo Delphi[6] com 50 especialistas e 32 autoridades educacionais, ponderou que: “Intuitivamente, pode parecer óbvio que, nas sociedades que podem proporcionar uma boa educação básica a todas as pessoas, existe mais igualdade de oportunidades. Há forte evidência de que as diferenças em educação são o principal correlato da desigualdade de renda, e que os países com pouca educação são, normalmente, os mais desiguais socialmente. No entanto, se não existe novas oportunidades de trabalho, a expansão da educação pode funcionar simplesmente como um mecanismo para distribuir os postos existentes de acordo com as credenciais educacionais dos candidatos, credenciais estas que dependem, por sua vez, do capital cultural e dos recursos financeiros dos estudantes e suas famílias. Uma oferta maior de oportunidades educacionais pode reduzir o valor das credenciais, mas não levaria, por si só, à criação de riqueza adicional” (2004, p. 152).

As mudanças constantes no cenário econômico, educacional, social, político e cultural, tanto no âmbito nacional quanto no internacional, estão se dando numa velocidade descompassada frente ao ritmo de crescimento/desenvolvimento da cidade de Goiânia – “distanciando” os ricos dos pobres, mas fazendo-os viverem no mesmo espaço geográfico. Tal realidade pode ter como hipótese aceitável o fato migratório, como defendido por Elder Dias no Jornal Opção (citado anteriormente): “Goiânia é uma cidade atraente. Nas estatísticas, está entre as capitais já consideradas consolidadas — excetuam-se as de Estados que eram territórios ou criados recentemente, como Palmas, no Tocantins —, que mais atraem para si uma enorme população, boa parte de outros Estados. Esse contingente vem em busca de melhores condições de vida, cada um a seu modo. Mas não só de pobres se constitui essa massa: há também, por exemplo, executivos de grandes empresas e indústrias da região metropolitana e de outras cidades. O grande desenvolvimento do Estado nas últimas décadas possibilitou também esse outro tipo de fluxo migratório (...) Goiânia virou parada tanto para quem está em situação cômoda financeiramente como para gente que vem tentar a sorte”[7].

Segundo a PNAD (Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio, desenvolvida pelo IBGE), em 2009[8], em termos absolutos, São Paulo é o Estado que mais recebeu imigrantes (535 mil), seguido de Minas Gerais (288 mil), Goiás (264 mil), Bahia e Paraná (ambos com 203 mil novos imigrantes). Entretanto, no que tange ao Índice de Eficácia Migratória, Goiás é o maior entre todos os Estados da Federação, com 0,32 – este Índice é a diferença entre a quantidade de pessoas que entraram no Estado (imigrantes) e as que saíram (emigrantes). Portanto, Goiás é o Estado com maior percentual no saldo líquido migratório - sendo que São Paulo apesentou um Índice de (-) 0,05, e Minas Gerais 0,02. Agravando este discurso, pensando especificamente no lado que personifica os imigrantes pobres em Goiânia, o jornalista Jackson Abrão, no Jornal Bom Dia Goiás[9], exibido em 21 de Março de 2014, acrescenta que o perfil migratório (dos pobres) para Goiânia é basicamente de pessoas com baixa renda, baixa qualificação e baixo nível educacional. Elementos estes que potencialmente impelem pessoas para a criminalidade.

Na reportagem de Alfredo Junqueira, publicada pelo Estadão, em 20 de Março de 2010, registra a mesma preocupação: “na avaliação do coordenador do relatório e diretor do Centro de Estudos e Monitoramentos das Cidades do Programa da ONU para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat), o mexicano Eduardo Lopez Moreno, existe vínculo direto entre desigualdade e criminalidade”[10]. Segundo um estudo feito pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, com o título: “Avanço da criminalidade nos centros urbanos: análise das causas da violência e falta de segurança em Goiânia”, escrito por Fernanda Bueno Penha, Carolini Bueno Penha e Josimar Gonçalves da Silva, apresentam as seguintes estatísticas e considerações sobre a criminalidade na Capital Goiana: “O trafico de drogas, crimes relacionados a acerto de contas e ao consumo de álcool são os principais motivos que levam a capital goiana a ocupar o 17º lugar no ranking de números absolutos das cidades mais violentas, com taxa de homicídio de 44,3 casos por 100 mil habitantes (...) Pobreza, precariedade de condições de vida, desigualdade social e densidade populacional costumam ser apontados como possíveis causas para a violência. Com base no exposto, a cidade de Goiânia está sujeita a ocorrência maior do crime de homicídio, considerando o aumento da população em área sem infra-estrutura...”[11].

É necessário reiterar, como defendido por Vera da Silva TELLES, professora livre-docente do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, no livro “Nas tramas da cidade – trajetórias urbanas e seus territórios” (2006), que não se faça o juízo preconcebido de uma criminalização da pobreza. É imprescindível que se analise todas as variáveis histórico-culturais que fomentam a criminalidade urbana e seus desdobramentos de territorialidade. Igualmente, no que tange a pobreza, é mister que se compreenda os fatores de impelem as pessoas a um estado de ausência/recessão do capital, comumente denominado de pobreza. Entrelaçar e condicionar a criminalidade ao estado de pobreza é minimizar os reais problemas estruturais da sociedade que mantem o atual sistema capitalista. Então, criminalidade não é uma questão exclusiva de classe social. Reafirmando tal preocupação, as autoras Juliana Daibert e Ana Lúcia Rodrigues apud Paulo César BONI (2011) afirma que as grandes mídias fortalecem o estereótipo de pobreza-criminalidade, o que reforça as hierarquias já estabelecidas e sedimenta um consenso em torna da temática.

O chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Assistência Social, Jefferson Coelho Lopes, representante do prefeito de Goiânia, Paulo Garcia, apresentou um defesa frente ao relatório da ONU-Habitat, contra-argumentando que: “...acredito que nos próximos anos, se continuarmos no mesmo caminho, Goiânia estará como uma das melhores cidades em termos de desigualdade social. Estamos combatendo a fome e a pobreza, e isto irá mudar esta realidade, comentou”[12]. Neste ínterim se passaram quatro anos (2010-2014), e a discussão continua distante de uma resolução prática. Então, como que num sussurro dos que vivem em Goiânia, emerge ponderações como a do Rapper[13] Goiano, Dener Cordeiro de Paula[14] (ou “Renedy”, nome artístico), de apenas 20 anos, que escreve na música “reflexão”, as seguintes provocações: “Você se importa com coisas inúteis, | E ás vezes não vê, | Perde o próprio raciocínio, | Sem perceber. | Ajuda um desconhecido, | A ganhar milhões na TV, | Se esquecendo que várias famílias | Não tem o que comer. | Por quê? Nossa mente, | É tão fácil de se perder, | (...) | Mas Não, ser humano, | Quer aumentar seu cachê, | Agride seus princípios | Pra tentar se desenvolver. | (...) | Mas a questão é que a paz sem justiça, é ilusão. | (...) Faça você mesmo, sua própria reflexão”.

Por fim, o questionamento de David HARVEY (2005) continua a ecoar, retoricamente, sem resposta pelas ruas e avenidas de Goiânia: Será que é possível se chegar a uma forma de organização social que garanta uma distribuição justa do produto social entre capital e trabalho, uma organização que também dê, ao trabalhador oportunidades de educação e progresso pessoal? Como podem ser reconciliados esses interesses opostos?

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 29 de Março de 2014]



[1] O Índice Gini é um instrumento para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo, foi criado pelo matemático italiano Corrado Gini (1884-1965).
[2] Disponível em: <http://al-go.jusbrasil.com.br/noticias/2185679/desigualdade-social> Acesso em: 26 de Março de 2014.
[3] Disponível em: <http://www.jornalopcao.com.br/posts/reportagens/os-extremos-se-encontram-em-goiania> Acesso em: 26 de Março de 2014.
[4] Disponível em: <http://diariodegoias.com.br/opiniao/5368-goiania-o-indice-de-gini-e-a-desigualdade-social> Acesso em: 26 de Março de 2014.
[5] Disponível em <http://www.ascom.ufg.br/pages/13084-goiania-e-10-mais-desigual-no-mundo> Acesso em: 27 de Março de 2014.
[6] Estudo Delphi é foi usada pela primeira vez pela Instituição RAND nos anos 50 para ajudar a força aérea dos EUA a identificar a capacidade que os soviéticos tinham para destruir alvos estratégicos americanos. Delphi é uma metodologia científica que permite analisar dados qualitativos.
[7] Disponível em: <http://www.jornalopcao.com.br/posts/reportagens/os-extremos-se-encontram-em-goiania> Acesso em: 26 de Março de 2014.
[8] Disponível em : <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2009/pnad_sintese_2009.pdf>
[9] Disponível em: <http://globotv.globo.com/tv-anhanguera-go/bom-dia-go/v/jackson-abrao-comenta-o-alto-indice-de-desigualdade-social-em-goiania/3228434/> Acesso em: 27 de Março de 2014.
[10] Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,goiania-e-a-cidade-mais-desigual-do-brasil,526930,0.htm> Acesso em : 26 de Março de 2014.
[11] Disponível em: <http://www.sbpcnet.org.br/livro/63ra/resumos/resumos/3652.htm> Acesso: 27 de Março de 2014.
[12] Disponível em: < http://al-go.jusbrasil.com.br/noticias/2185679/desigualdade-social> Acesso em: 26 de Março de 2014.
[13] O Rap é um discurso rítmico com rimas e poesia, surgido na Jamaica nos anos 60 e popularizada pelos negros de periferia dos estados Unidos no final do século XX. A linguagem do Rap é demasiadamente difundida entre as classes pobres e serve como instrumento de crítica e reflexão.
[14] Dener Cordeiro de Paula é aluno da UNIP em Goiânia (Go), no curso de Administração. Para conhecer mais o trabalho musical dele acesse: https://soundcloud.com/renedy10

::Referências Bibliográficas::
BONI, Paulo César (org). Fotografia: múltiplos olhares. Londrina: Midiograf, 2011.
HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.
SCHWARTZMAN, Simon. As causas da pobreza. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
TELLES, Vera da Silva e CABANES, Robert (org). Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Associação Editorial Humanistas, 2006.
TELLES, Vera da Silva. Questão Social: afinal do que se trata? São Paulo em Perspectiva, vol. 10, n. 4, out-dez/1996. p. 85-95.

sábado, 22 de março de 2014

Chegou o dia da prova !


“O homem não é nada além daquilo que a educação faz dele”.
Immanuel Kant (1724-1804) 

O grande leviatã que assombra a mente e coração dos alunos é a aterrorizante “prova”. Termo este que ao poucos foi ganhando novas nomenclaturas com fins a não assombrar os discentes que resumem suas jornadas acadêmicas numa lauda de questões. Dai surgem expressões do tipo: avaliações, trabalhos avaliativos, verificação da aprendizagem, entre outras. De fato pouco importa os nomes pomposos ou popularistas que se dão, quando este dia chega não resta dúvida, o medo personifica nas salas de aula. Nada é mais horripilante que a data da prova, é como conduzir ovelhas ao matadouro. Assemelha-se ao sentimento de desespero de soldados desarmados em plena guerra bélica. Então, a pior expressão que pode ser pronunciado nos rincões acadêmicos é: “chegou o dia da prova!”.

A razão para tão grande terror tem várias vertentes: medo do professor castigar os alunos – ao que parece os alunos acreditam veementemente que castigar faça parte da índole do ser professor. Medo de não conseguir responder o que o professor quer – dá a impressão que o aluno não está preocupado em aprender de fato, mas sim em concordar tematicamente com o professor. Medo de não saber a matéria – reação previsível aos alunos que fazem da educação um encontro social qualquer, sem comprometimento e reflexão prática. Medo de não passar na disciplina – tristemente para uma maioria esmagadora o que interessa é passar, não necessariamente aprender, por isto a prova é tão importante.

As provas, de qualquer gênero, são recursos que visam, essencialmente, atender as necessidades da Instituição de Ensino no quesito padronização. Com as provas os alunos estão amparados para valer-se de recursos de revisão, caso se sinta prejudicados pelo algoz/professor – por esta razão decoram e colocam na prova igualzinho ao livro/apostila. Com as provas os professores estão amparados, documentalmente, a não terem que atender as necessidades socioeducacionais de cada aluno – por esta razão usam as provas para nivelar, ou melhor, excluir os alunos com dificuldade de aprendizado. Com as provas as coordenações estão amparadas a encerrar qualquer discussão entre alunos e professores, pois afinal a prova é, acima de qualquer suspeita, um documento – por esta razão não orientam avaliações participativas, orais ou grupais, que torna subjetivo os critérios.

Acredito que a função avaliativa deva estar subordinada à função educativa, ou seja, mais importante que obtenção de notas (ou as formas de obtenção de nota) e a capacidade do aluno de aprender. Para tanto o planejamento educacional e as ações educativas devem contemplar de forma satisfatória a interação social do aluno-aluno, aluno-professor, aluno-sociedade. Já que as relações interpessoais estão presentes em todo o ambiente educacional, sendo que o próprio aprendizado se dá pela interação entre os agentes educacionais. Por isto, o aprendizado é fruto das interfaces das vivências. Por este motivo, o ensino não é linear, mas sim cíclico.

O ser humano é um ser em transformação continua – inacabado e inconcluso. Sendo que o desenvolvimento cognitivo se dá a partir da capacidade individual de cada pessoa, não sendo, portanto, a educação um processo de padronização, mas sim uma imersão do saber a partir do contexto social, cultural, educacional e econômico dos alunos. Portanto, torna imperativa a valorização das diversidades de ambientes e sistemas de avaliações educacionais. O processo cognitivo é fundamental para o desenvolvimento do conhecimento a nível acadêmico, pois torna científicos os saberes do cotidiano – e é isto que precisa ser realmente avaliado.

Então, talvez, se tivéssemos no máximo cinco alunos por turmas (o número de alunos citado é apenas para exemplificar a necessidade do esvaziamento das classes), e que as aulas assumissem um caráter multi-inter-transdisciplinar, conseguiríamos construir uma educação sem o mostro da prova – seria tipo a histórica educação informal grega. Contudo, tal proposta se torna inviável financeiramente aos defensores da privatização educacional, e, compromete os índices nacionais/internacionais da educação pública – por isto: prova neles!

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 21 de Março de 2014]

quarta-feira, 5 de março de 2014

Os pobres e a exclusão socioeducacional


“Superar a pobreza não é um gesto de caridade. É um ato de justiça; É a proteção de um direito humano fundamental, o direito à dignidade e a uma vida decente”.
Nelson Mandela (1918-2013) 

A pobreza é uma realidade nos rincões brasilianos[1], e tal mazela tornar visível a incapacidade humana de interagir socialmente tendo em visto o bem coletivo, provocando a marginalidade. Neste viés, sem as devidas análises históricas-antropológicas, “os pobres são identificados com o banditismo, o crime, a prostituição, a mendicância e outros fenômenos da patologia social, constituindo a classe perigosa” (LAPA, 2008:18). É imprescindível que se desenvolva um estudo sistemático sobre os pobres, postulando sobre as raízes etnográficas desta subclasse social, discorrendo sobre as âncoras que abalizam a consciência social destes e pesquisando sobre a formação cultural-cosmológica dos excluídos.

A pobreza, quando não analisada de forma sociológica pode, erroneamente, ser categorizada, precocemente, apenas como má sorte de alguns que por não terem capacidades “especificas” permanecem pobres – ignorando toda e qualquer relação/ responsabilidade dos semelhantes seres humanos. Temas sociais estes abordados no poema de LIMBERGER (2002:85) intitulado Sociedade Capitalista: “Ganância, lucros e juros | Desumanização | A bolsa de valores | Jogo capitalista | (...) | Desigualdade social | Ferida aberta | Sem saída | Fechar-se em um pequeno mundo | Cercado de grades e muros | Em volta tudo que o dinheiro possa comprar”.

As desvirtudes presentes nas comunidades em estado de vulnerabilidade social tem recebido uma nova reconstrução na cosmovisão pós-moderna, como aponta MARTINS: “no Brasil, políticas econômicas atuais, que poderiam chamar-se neoliberais, acabam por provocar, não políticas de exclusão e, sim, políticas de inclusão precária e marginal, ou seja, incluem pessoas nos processos econômicos, na produção e na circulação de bens e serviços estritamente em termos daquilo que é racionalmente conveniente e necessário à mais eficiente (e barata) reprodução do capital” (MARTINS, 1997:20). Neste sentido, os meios de produção industrial e as instituições educacionais fomentam uma falsa acessibilidade humanística/social que acoberta a real exclusão dos pobres, que são usados apenas como força motriz do mais-valia[2] de Marx. Tal intendo só é possível por causa do rompimento antropológico do ser humano com sua própria historicidade e por causa da desconstrução social dos grupos marginalizados com sua própria relação mercantil.

As comunidades que se localizam nas periferias coexistem distantes dos centros urbanos, sendo que a priori esta pobreza “não transforma homens em ralé” (HEGEL, 1997:277). Contudo, agregado a este distanciamento urbano surge as dificuldades de acesso a informação, escolas, faculdades, leitura, manifestações culturais, poesia, por conseguinte apresentam uma baixa renda familiar. Uma das grandes carências destas comunidades de excluídos[3] é a ausência de programas, contínuos e intencionais, que fomentem o desenvolvimento socioeducacional desta gente. Tendo em vista que as limitações socioeducacionais impostas pelo estado de pobreza dos grupos minoritários descortinam os fatos sociais[4] que os mantem em condições marginais.

A linguagem poética pode ser utilizada como ferramenta de combate ao analfabetismo e/ou analfabetismo funcional[5] - sendo estes os principais fatores que mantem tais grupos no submundo do Capitalismo, forçando-os a serem explorados socialmente, inaptos educacionalmente e estereotipizados antropologicamente. O escritor e poeta José SARAMAGO endossa tal pressuposto no poema Fala do Velho do Restelo Ao Astronauta (1997:84): “Aqui, na Terra, a fome continua, | A miséria, o luto, e outra vez a fome. | Acendemos cigarros em fogos de napalme | E dizemos amor sem saber o que seja. | Mas fizemos de ti a prova da riqueza, | Ou talvez da pobreza, e da fome outra vez. | E pusemos em ti nem eu sei que desejo | De mais alto que nós, de melhor e mais puro. | No jornal soletramos, de olhos tensos, | Maravilhas de espaço e de vertigem: | Salgados oceanos que circundam | Ilhas mortas de sede, onde não chove. | Mas o mundo, astronauta, é boa mesa | (E as bombas de napalme são brinquedos), | Onde come, brincando, só a fome, | Só a fome, astronauta, só a fome”.

A vivência das comunidades em estado de vulnerabilidade social apresenta algumas particularidades, a saber: 1) A simplificação da vivência social, sendo a busca existencial limitada às necessidades fisiológicas[6] – tornando uma utopia pouco admirável as lutas urbanas cunhadas pelo homo economicus[7]; 2) A segregação étnica e cultural, sendo empiricamente perceptível que a maioria dos que comungam da comunidade em estado de vulnerabilidade social são de cor negra – fomentando o imaginário racista[8] tupiniquim que vale-se das diferenças antropológicas como fator de opressão/escravidão racial/capitalista; e, por fim, 3) A ineficiência da educação formal, sendo esta descontextualizada e ininteligível para os marginalizados, adestrando-os academicamente – desnudando a educação informal como a acolhedora dos excluídos, reconstruindo as relações sociais[9] e relendo o homem a partir do saber reflexivo (práxis) e contemplativo (poético).

Faz-se necessário reavaliar as práticas socioeducacionais a partir do pressuposto de cidadania, solidariedade e amor – pilares da função poética e elementos subsistentes entre as comunidades pobres, como endossa BRANDÃO: “Ao falar de educação e de aprendizagem, escrevo falando do amor e da solidariedade. Ao pensar em cidadania, lembro a partilha e participação. Ao sugerir em nome do que, para quem e com quem destino de pessoa ou sociedade vale a pena reinventar o amor como fonte e destinatário da própria educação, sugiro também gestos interativos e ações sociais que o tornem um experiência concreta da vida (...) a educação não muda o mundo. A educação muda as pessoas. As pessoas mudam o mundo” (BRANDÃO, 2005:25,31). Pelo exposto por BRANDÃO podemos ratificar que o processo de exclusão se inicia a partir do distanciamento fraterno que nutri a existência humana. Somente quando a educação se engordura entre as sociedades é que pode haver ensino relevante e contextual.

É de suma importância a análise da pobreza como fator de exclusão socioeducacional, pois a miséria é um estado provocado pela má aglomeração social. Desta perspectiva percebe-se a ineficiência do Capitalismo como fator de ascensão social, pois como afirma DEMO: “...os pobres excluídos aumentam, já não são funcionais ao sistema produtivo, vivem a angústia existencial da desqualificação etc (...) esperar que o capitalismo aceite assistir a todos os pobres é uma banalidade comprometedora (...) se os excluídos ameaçam a ordem social, não cabe vê-los como simplesmente ‘excluídos’; dialeticamente falando, fazem parte do sistema, mesmo que se sintam inúteis” (DEMO, 2002:4,6,30).

A perda da consciência sociológica (fraterna e poética) e, então, o inevitável destaque individualístico de alguns (leia-se, dos afortunados) corrobora para a sedimentação do conceito durkheimiano de solidariedade orgânica[10]. A linguagem poética pode ser um lampejo de esperança nesta inquietante desigualdade social. Através da perspectiva sociolingüística intrínseca a função poética pode-se conscientizar, confrontar e confortar. Na poesia pode-se contemplar a realidade social à volta e propor caminhos mais coloridos a partir de uma práxis artística. Na poesia pode-se desarmar os preconceitos culturais enraizados historicamente nas periferias e propor discussões contextualizadas com relevância social, educacionais e lingüística.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 20 de Novembro de 2013]



[1] O termo brasiliano foi muito difundido e popularizado na obra de ROQUETTE-PINTO (1884-1954) - médico, professor, escritor, antropólogo, etnólogo e ensaísta brasileiro. Ele escreveu, entre outras obras: Guia de antropologia (1915), Rondônia (1916), Seixos rolados Estudos brasileiros (1927), Ensaios de antropologia brasiliana (1933) e Ensaios brasilianos (1941). Qualquer estudo/pesquisa sobre a pobreza e seus impactos socioeducacionais devem se ater a clássica advertência de ROQUETTE-PINTO quanto aos índios: “nosso papel social deve ser simplesmente proteger, sem procurar dirigir, nem aproveitar essa gente” (ROQUETTE-PINTO, 1938:304).
[2] O termo mais-valia foi utilizado por Karl MARX (1818-1883) para demonstrar a injustiça/desigualdade capitalística de condicionar os trabalhadores a produzir excessivamente e estes não partilharem dos lucros deste labor – tal pressuposição é a base para o acumulo de capital, como Marx afirma: “a valorização do capital, isto é, apropriar-se de trabalho excedente, produzir mais-valia, lucro” (MARX, 1974:289).
[3] A utilização da expressão comunidades de excluídos se deve pelo fato deste grupo estar às margens da evolução acadêmica, distantes das manifestações culturais e por apresentar uma lentidão no processo de melhoria na qualidade de vida.
[4] DURKHEIM define fatos sociais, nos seguintes termos: “É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior, (...) que é geral na extensão de uma sociedade dada, e, ao mesmo tempo, possui existência própria, independente de suas manifestações individuais” (DURKHEIM, 2007:13).
[5] O termo analfabetismo funcional refere-se àquelas pessoas que aprenderam a decodificar a linguagem escrita de forma muito rudimentar e, então, não conseguiram desenvolver a habilidade de interpretação de texto, tem dificuldades com leitura e construção de redação.
[6] Necessidades fisiológicas “são as necessidades vegetativas relacionadas à fome, ao sono, ao cansaço etc. Essas necessidades dizem respeito à sobrevivência do indivíduo e da espécie...” (OLIVEIRA, 2002:150).
[7] O termo homo economicus pode ser entendido com o máxima: “as pessoas estão interessadas em ganhos financeiros, pura e simplesmente” (CHIAVENATO, 2004:116). O termo foi criado no período do taylorismo (aproximadamente 1910), fruto final da Revolução Industrial, sendo confrontado posteriormente pelo conceito do homo social resultante da experiência de Hawthorne (aproximadamente 1930).
[8] “Os negros e pardos são 64 % dos pobres (...) O racismo deve ser pensado como resultado da conjunção entre a crise da modernidade e a dificuldade que esta possui de integrar a diferença” (GOMIDE, 2002:53).
[9] “A educação é parte da engrenagem social (...) a educação é função da sociedade” (CENDALES, 2006:13).
[10] DURKHEIM definiu a solidariedade orgânica em sua obra “Da Divisão do Trabalho Social” escrita em 1893. A solidariedade orgânica implica numa maior autonomia, com uma consciência individual mais livre. Ou seja: “ela liga diretamente as coisas às pessoas, mas não as pessoas entre si (...) ela não faz que as vontades se movam em direção a fins comuns, mas apenas que as coisas gravitem com ordem em torno das vontades (...) Longe de unir, elas só ocorrem para melhor separar o que está unido pela força das coisas, para restabelecer os limites que foram violados e recolocar cada um em sua esfera própria”  (DURKHEIM, 1999:91 e 94).

::Referências Bibliográficas::
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Aprender o amor: sobre um afeto que se aprende a viver. São Paulo: Papirus, 2005.
CENDALES, Lola; GERMÁN, Mariño. Educação Não-Formal e Educação Popular. São Paulo: Loyola, 2006.
CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à Teoria Geral da Administração – Edição Compacta. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
DEMO, Pedro. Charme da Exclusão Social. 2. ed. São Paulo: Autores Associados, 2002.
DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
DURKHIEM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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