sexta-feira, 29 de maio de 2015

De quando os loucos fogem


"E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música”.
Friedrich Nietzsche (1844-1900) 

Louco: maluco, perdido, confuso, obtuso, parafuso, insano, desvairado, descontrolado, desformatado, incompatível, anormal, existencial. Das multiformas de se enlouquecer, ou das multifacetas daqueles que já reconhecem suas próprias loucuras, dali se assevera que neste mundo prosopopeico não há mais espaço na cadeia cromática para aquelas cores inconciliáveis. Ser louco é experimentar o novo de forma nova, é desafiar os saberes que já estão embebecidos de lodos fungos, é contestar o óbvio dado e rasgar a cartilha de orientação dos preguiçosos ditadores do aceitável.

O louco é marginalizado por causa das insanidades que o mantem vivo, pois para os normais a loucura é sempre desconcertante e mui convidativa. Viver na loucura é fazer desta jornada previsível uma montanha-russa de sensações únicas, quase inexpressíveis, não por causa da insignificância, mas sim por causa da intransliteratividade do que se vive. Os loucos não são bem-vindos neste mundo de resultados esperados, pois dos loucos tudo se pode esperar, inclusive, espera nada.

Lá da nossa insanidade mais cognoscível se gangorreia: os terráqueos quando ficam parados estão refletindo, os loucos quando parados estão depressivos por causa da intolerância à anomalia; os normais quando falam muito é porque precisam desabafar, quando os loucos o fazem são rechaçados a esteria de tentar alertar acerca do fim trágico que todos nós estamos indo; quando os previsíveis mortais choram é por causa das mazelas da vida, quando os loucos choram é por perceber que todo o esforço de humanização se perdeu entre os da mesma espécie.

Há muito louco disfarçado de normal para ser aceito na sociedade dos carapalidas anormóticos. Igualmente a muitos desvairados normais que se trejeitam de loucos para serem aceitos por si mesmos. Assumir a nossa insanidade é um passo rumo à sanidade, pois nada se pode esperar daqueles que não desfrutam da sua própria maluquice. Assumir a nossa doidera existencial é reconectar com a esperança que orbita sob nossas cabeças. Assumir a nossa idiossincrasia esquizofrênica é perceber que somos únicos, não por causa de nossas especificidades, mas sim por nossa demência indivisível, porém partilhável.

O mundo precisa de mais loucos fora dos cativeiros, para além dos esconderijos, sem serem abafados, sem viverem marginalizados. A loucura precisa ser compartilhada, ser capaz de contaminar os intocáveis, e quem sabe, se tornar um vírus letal capaz de assassinar nossas normoses. Louco não é o diferente que se assumi diferente, mas sim aquele que acha ser capaz de viver neste presente século em paz, harmonia e bem-estar social coletivo. Somos todos loucos, quer seja pelo que somos, ou pelo que não queremos ser. Enfim, a loucura é um bem coletivo, um patrimônio cultural de ser humano, uma condição para se começar a viver.

É hora de se despir do traje de normal é redescobrir a nudez de se estar aqui. O louco é bem-vindo nesta confraria de amigos. Pra cá sempre há espaço para mais um que se sente deslocado frente à macha da humanidade moderna. É aqui que todo insano pode se assumir quanto gente. Junto aos loucos nos sentimos confortáveis, pois não precisamos usar as máscaras do normal. Junto aos loucos percebemos que é normal ser louco, por isto não mais precisamos disfarçar. Junto aos loucos podemos sorrir, dançar, brincar, cornetar e até reconectar. Quando os loucos fogem... todos perecem como loucos.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 29 de Maio de 2015]

sábado, 16 de maio de 2015

O castigo de pensar


Importante não é ver o que ninguém nunca viu, mas sim, pensar o que ninguém nunca pensou sobre algo que todo mundo vê”.
Arthur Schopenhauer (1788-1860)

Desde a minha infância sempre associei a atividade reflexiva, isto é, a capacidade de pensar, com algo que se envolvesse ao menos com alguma das alienas que se seguem: leitura, crítica, academicidade, livro, extrapolar o senso-comum, insights originais, criatividade, entre outros distintivos semelhantes. Pensar não era uma atividade normal, ou um atributo natural de se ser “ser humano”, pensar requeria capacidade de correlacionar saberes, era preciso ter uma visão total dos fatos para emitir uma opinião decente, era necessário ter fundamentação teórica-conceitual-filosófica e aplicabilidade de práxis. Talvez seja por esta razão que passamos tanto tempo na escola, ou seja, tentando aprender a pensar, mas no fim percebemos que, às vezes, o tempo estudantil fora insuficiente ou inútil para tal intento.

A escola, percebendo que, na maioria das vezes, não conseguia fazer as pessoas pensarem, optaram, então, por resumir suas funções pedagógicas a: provas, avaliações, trabalhos, aulas e atividades socioeducativas. Para pensar é preciso romper estes limitadores educativos, carece superar as jaulas da escola e faz-se necessário ler mais que o proposto por professores. A escola pode até ser relevante no processo de desenvolvimento do pensar, mas não necessariamente por causa de seus programas educacionais, talvez sim por oportunizar uma diversificação de histórias carregadas de historicidades, aprendizados empíricos e também por causa do conhecimento acumulado. Enfim, o ambiente escolar pode até ser um dos vários fomentadores do pensar, mas é preciso tira-lo do cativeiro acadêmico, pensar requer liberdade.

Estranhamente, passados os anos da minha infância, percebo hoje que pensar pouco tem haver com os parágrafos anteriores aqui descritos e a escola se distanciou mais ainda desta capacidade reflexiva. Deste hiato monstruoso e desta orfandade reflexiva surgiu uma nova aplicabilidade do termo “pensar”, que modernamente (estranha e esquizofrenicamente) fora associado a um tal de “cantinho da disciplina”. Quem popularizou (não necessariamente quem criou a concepção) foram as supernanny’s (utilizo no plural porque a supernanny brasileira, Cris Poli, na verdade é um remake “suecado” do programa norte-americano). A ideia é colocar a criança no “cantinho da disciplina” para “pensar”, e detalhe, o tempo de pensar é proporcional à idade da criança (1 ano, 1 minuto; 2 anos, 2 minutos; e assim sucessivamente).

Ao associar o ato de pensar com o castigo (termo suavizado pela expressão pomposa “cantinho da disciplina”) cria-se uma das piores associações possíveis, capaz de causar deformidades conceituais inimagináveis. Primeiro, porque, a criança já cresce entendendo que pensar significa ir para o castigo. Segundo, a criança é fortemente condicionada a entender que pensar é uma ação que se dá a partir de erros cometidos. Terceiro, a criança associa pensar com ficar quieto num canto, isolado. Quarto, a criança aprende que após pensar receberá estímulos positivos. Quinto, a criança cria um conceito demonizante do termo pensar. Sexto, parece haver certa proximidade imagética do “cantinho da disciplina” com o antigo castigo de colocar crianças com orelhas de burro no canto da classe. Tristemente, nesta modernidade tardia, pensar não tem mais nada haver com experiência (numa perspectiva Benjaminiana – Walter Benjamin), leitura, reflexão conceitual, historicidade e etc. Chegamos ao tempo em que pensar, enfim, virou um castigo!

Fico a imaginar estas crianças ao chegarem ao ensino médio, ou na faculdade, e o professor pronunciar a expressão: “classe, vamos pensar”. Quais as correlações, sensações, simbolismos de representação e recalque (conforme propõem Sigmund Freud) serão resgatados? Qual a violência simbólica, como propõe Pierre Bourdieu, estão intrínseco neste ato de pensar como posto na atualidade. É provável que a reação seja desconcertante. Ou quem sabe, chegará o dia em que já não mais se usará a expressão “vamos pensar” em sala de aula para evitar estas aproximações placebas de ordem conceituais/psicológicas/psicanalíticas de similitudes com o castigo. De uma forma ou de outra, o ato de pensar, deixa de ser um lugar reflexivo/conceitual e ocupa um lugar minimizado, ridicularizado e infantilizado. Tristemente, chegamos ao tempo em que pensar, enfim, virou um castigo!

Ps.: Reconheço que o “cantinho da disciplina” é uma metodologia que tem suas funcionabilidades e aplicabilidades, especialmente por excluir agressões verbais ou físicas, entre outros benefícios. Genuinamente, a metodologia em si tem lá seus resultados positivos. Contudo, não é sobre isto que o referido texto está discutindo. O foco aqui é sobre os impactos do termo “pensar” na construção cognitiva das crianças. O problema não está no método em si, mas sim na nomenclatura de designação: “pensar”.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 15 de Maio de 2015]