"O capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os
parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um
organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento".
Zygmunt Bauman (1925-2017)
A cidade de Aparecida de Goiânia teve seu início oficial em
1922, a partir da doação de terras, por parte de fazendeiros locais, para a
construção da Igreja de Nossa Senhora Aparecida. Ali se formou um vilarejo, que
nas décadas de 1950 e 1960 foi alvo de uma grande explosão demográfica
ocasionada pela Marcha para o Oeste,
pela nova capital do Estado de Goiás, pela construção de Brasília e pela
construção da BR-153. Entretanto, somente em 14 de Novembro de 1963 a cidade de
Aparecida de Goiânia emancipou-se, pela Lei Estadual nº 4.927, de 14 de
novembro de 1963.
A cidade de Aparecida de Goiânia, desde sua formação em 1922,
vem sofrendo, gradualmente, uma série de mudanças sociais, ora provocada pela
migração territorial desmedida, ora por um Plano Diretor ineficaz, ora pela
especulação imobiliária desordenada. Contudo, apesar da suposta expansão
territorial de Aparecida de Goiânia, é oportuno asseverar que a cidade convive,
ainda que por meio de uma visão romântica, uma perspectiva de saudosismo subjetivo
permeado por manifestações da cultura popular regional, especialmente no
quesito musical.
É válido considerar que tais percepções se inserem no
contexto histórico-social da cidade de Aparecida de Goiânia, conforme se
observa na letra da canção “lugarzinho bom de morar”, de autoria de Yeda Célia
Paes Landim: “Lugarzinho bom de morar | Cidade de Aparecida | Como é bom
apreciar | Lá na Praça da Matriz | Ainda pode-se sentar | Para um bate-papo
amigo | Ou até negociar | Seus belos tempos passados | Gosto muito de lembrar |
Carros de bois pela ruas | Banda de música a tocar | As famílias reunidas |
Pros festejos do lugar | Aparecida meu orgulho | Quero te ver prosperar | Mais
não deixe o progresso | Seus bons valores mudar | [...]” (Jornal Diário de Aparecida,
p. 2, n° 1262, de 11 de Dezembro de 2015).
Para Hoggart (1973) a música ocupa lugar de destaque no
desvelar da cultura popular, e sendo assim, torna-se oportuno analisar as
representações que a canção acima evidencia, desvelando coexistir, simultaneamente,
na história aparecidense, dois possíveis paradigmas socioculturais: primeiro, demonstra
que a população gangorreia, por meio de um saudosismo desacerbado, entre a
realidade objetiva e as expectativas subjetivas. Sendo que para Ribeiro (1985) isto
teria uma origem histórica, pois os ditos Povos-Novos se inspiram em “miragens
de paraísos perdidos” (p. 75), um resgate mítico de um suposto tempo melhor do
que o tempo presente, esta miragem pode maquiar a realidade histórico-social e,
então, favorecer o estado de naturalização da pobreza no município.
Tais afirmativas são plausível de comprovação por meio da
percepção romântica e da expectativa subjetiva registrada na narrativa do ex-prefeito
da cidade, como se segue: “Aparecida de Goiânia, ainda por muito tempo, será a
alternativa primeira para onde a maior parte do povo se deslocará, tornando-se
no futuro o maior aglomerado urbano de Goiás, devendo proximamente superar
Goiânia em termos de população porque dispõe de espaço físico maior que a
capital e seu crescimento demográfico é mais contínuo” (MELO, 2002, p. 58).
No relato acima, a semelhança da canção de Yeda, demonstra
uma expectativa de futuro subjetiva resgatando uma perspectiva de passado
romanceada, sem levar em consideração a historicidade e a realidade, tal fato
distancia os possíveis diálogos para compreensão da realidade.
O segundo aspecto que a citada canção evidencia é a
naturalidade com que o processo denominado de progresso é entendido de forma passiva, como um caminho inevitável
de desconstrução dos valores regionais. Melo (2002) também caminha pela mesma
via e afirma: “[...] As deficiências de uma cidade que cresce de uma hora para
outra são naturais [...]” (p. 58). Entretanto, é exatamente esta concepção que
favorece o percurso de naturalização do estado de pobreza. De contrapartida, na
percepção de Simone (2014), ao olhar para o passado de Aparecida, ela tem a
impressão que o progresso não precisava ter sido tão destruidor da arquitetura,
cultura e história local.
A canção de Yeda desvela os dois paradigmas sociais dispostos
anteriormente, mas também evoca outro fator importante para a compreensão da
historicidade da população aparecidense, que é o contexto rural inserido na
constituição cultural da cidade. Na canção de Yeda há menção desta ruralidade,
pressuposto também defendido por Simone (2014) e Moraes (2003), sendo que para
esta última autora, até meados de 1930 a urbanização de Goiás foi sustentada
por uma ocupação rural, e acrescenta: “as cidades goianas retratam
características rurais na sua estrutura urbana, na sua arquitetura e nas
características de seu povo” (MORAES, 2003, p. 27).
A música de raiz, entendendo ser este gênero musical uma das formas
de maior expressividade da cultura rural, então, pode conseguir carregar o
germe da resistência, pois como consideram Markman (2007) e Tinhorão (2001), a
dinâmica deste gênero musical não segue a lógica evolutiva da cultura das
elites que são, majoritariamente, urbanas e consumistas. Este dualismo do
rural-urbano presente na trajetória histórica de Aparecida de Goiânia consegue reacender
na modernidade aparecidense, resguardadas as devidas proporções, os conflitos e
lutas socioculturais do campo-cidade, trazendo implicações diretas nas relações
embrionárias da pobreza urbana.
Enfim, o regionalismo rural goiano pode ser
um elo de resistência, ainda que adormecido e silencioso, nas entranhas de
Aparecida de Goiânia. Contudo, com o alvorecer dos anos, mais distante das
heranças rurais, os aparecidenses vão sendo achacados nos moldes da urbanidade
capitalista.
Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 02 de Março de 2016]
HOGGART,
Richard. As Utilizações Da Cultura –
aspectos da vida cultural da classe trabalhadora. 1° Volume. Lisboa:
Editorial Presença, 1973.
MARKMAN, Rejane. Música
e simbolização. São Paulo: Annablume, 2007.
MELO, Freud de. Aparecida
de Goiânia: do Zero ao Infinito. Goiânia: Asa Editora, 2002.
MORAES,
Lucia Maria. A Segregação Planejada:
Goiânia, Brasília e Palmas. Goiânia: Editora da UCG, 2003.
RIBEIRO,
Darcy. Os Brasileiros. Livro I – Teoria
do Brasil. 8 ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
SIMONE, Nilda. Um
Olhar sobre Aparecida: História e Cultura. Goiânia: Kelps, 2014.
TINHORÃO, José Ramos. Cultura
popular: temas e questões. São Paulo: Editora 34, 2001.
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