segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Aparecida de Goiânia: possibilidades de resistência


"O capitalismo é um sistema parasitário. Como todos os parasitas, pode prosperar durante certo período, desde que encontre um organismo ainda não explorado que lhe forneça alimento".
Zygmunt Bauman (1925-2017)

A cidade de Aparecida de Goiânia teve seu início oficial em 1922, a partir da doação de terras, por parte de fazendeiros locais, para a construção da Igreja de Nossa Senhora Aparecida. Ali se formou um vilarejo, que nas décadas de 1950 e 1960 foi alvo de uma grande explosão demográfica ocasionada pela Marcha para o Oeste, pela nova capital do Estado de Goiás, pela construção de Brasília e pela construção da BR-153. Entretanto, somente em 14 de Novembro de 1963 a cidade de Aparecida de Goiânia emancipou-se, pela Lei Estadual nº 4.927, de 14 de novembro de 1963.

A cidade de Aparecida de Goiânia, desde sua formação em 1922, vem sofrendo, gradualmente, uma série de mudanças sociais, ora provocada pela migração territorial desmedida, ora por um Plano Diretor ineficaz, ora pela especulação imobiliária desordenada. Contudo, apesar da suposta expansão territorial de Aparecida de Goiânia, é oportuno asseverar que a cidade convive, ainda que por meio de uma visão romântica, uma perspectiva de saudosismo subjetivo permeado por manifestações da cultura popular regional, especialmente no quesito musical.

É válido considerar que tais percepções se inserem no contexto histórico-social da cidade de Aparecida de Goiânia, conforme se observa na letra da canção “lugarzinho bom de morar”, de autoria de Yeda Célia Paes Landim: “Lugarzinho bom de morar | Cidade de Aparecida | Como é bom apreciar | Lá na Praça da Matriz | Ainda pode-se sentar | Para um bate-papo amigo | Ou até negociar | Seus belos tempos passados | Gosto muito de lembrar | Carros de bois pela ruas | Banda de música a tocar | As famílias reunidas | Pros festejos do lugar | Aparecida meu orgulho | Quero te ver prosperar | Mais não deixe o progresso | Seus bons valores mudar | [...]” (Jornal Diário de Aparecida, p. 2, n° 1262, de 11 de Dezembro de 2015).

Para Hoggart (1973) a música ocupa lugar de destaque no desvelar da cultura popular, e sendo assim, torna-se oportuno analisar as representações que a canção acima evidencia, desvelando coexistir, simultaneamente, na história aparecidense, dois possíveis paradigmas socioculturais: primeiro, demonstra que a população gangorreia, por meio de um saudosismo desacerbado, entre a realidade objetiva e as expectativas subjetivas. Sendo que para Ribeiro (1985) isto teria uma origem histórica, pois os ditos Povos-Novos se inspiram em “miragens de paraísos perdidos” (p. 75), um resgate mítico de um suposto tempo melhor do que o tempo presente, esta miragem pode maquiar a realidade histórico-social e, então, favorecer o estado de naturalização da pobreza no município.

Tais afirmativas são plausível de comprovação por meio da percepção romântica e da expectativa subjetiva registrada na narrativa do ex-prefeito da cidade, como se segue: “Aparecida de Goiânia, ainda por muito tempo, será a alternativa primeira para onde a maior parte do povo se deslocará, tornando-se no futuro o maior aglomerado urbano de Goiás, devendo proximamente superar Goiânia em termos de população porque dispõe de espaço físico maior que a capital e seu crescimento demográfico é mais contínuo” (MELO, 2002, p. 58).

No relato acima, a semelhança da canção de Yeda, demonstra uma expectativa de futuro subjetiva resgatando uma perspectiva de passado romanceada, sem levar em consideração a historicidade e a realidade, tal fato distancia os possíveis diálogos para compreensão da realidade.

O segundo aspecto que a citada canção evidencia é a naturalidade com que o processo denominado de progresso é entendido de forma passiva, como um caminho inevitável de desconstrução dos valores regionais. Melo (2002) também caminha pela mesma via e afirma: “[...] As deficiências de uma cidade que cresce de uma hora para outra são naturais [...]” (p. 58). Entretanto, é exatamente esta concepção que favorece o percurso de naturalização do estado de pobreza. De contrapartida, na percepção de Simone (2014), ao olhar para o passado de Aparecida, ela tem a impressão que o progresso não precisava ter sido tão destruidor da arquitetura, cultura e história local.

A canção de Yeda desvela os dois paradigmas sociais dispostos anteriormente, mas também evoca outro fator importante para a compreensão da historicidade da população aparecidense, que é o contexto rural inserido na constituição cultural da cidade. Na canção de Yeda há menção desta ruralidade, pressuposto também defendido por Simone (2014) e Moraes (2003), sendo que para esta última autora, até meados de 1930 a urbanização de Goiás foi sustentada por uma ocupação rural, e acrescenta: “as cidades goianas retratam características rurais na sua estrutura urbana, na sua arquitetura e nas características de seu povo” (MORAES, 2003, p. 27).

A música de raiz, entendendo ser este gênero musical uma das formas de maior expressividade da cultura rural, então, pode conseguir carregar o germe da resistência, pois como consideram Markman (2007) e Tinhorão (2001), a dinâmica deste gênero musical não segue a lógica evolutiva da cultura das elites que são, majoritariamente, urbanas e consumistas. Este dualismo do rural-urbano presente na trajetória histórica de Aparecida de Goiânia consegue reacender na modernidade aparecidense, resguardadas as devidas proporções, os conflitos e lutas socioculturais do campo-cidade, trazendo implicações diretas nas relações embrionárias da pobreza urbana. 

Enfim, o regionalismo rural goiano pode ser um elo de resistência, ainda que adormecido e silencioso, nas entranhas de Aparecida de Goiânia. Contudo, com o alvorecer dos anos, mais distante das heranças rurais, os aparecidenses vão sendo achacados nos moldes da urbanidade capitalista.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 02 de Março de 2016]


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
HOGGART, Richard. As Utilizações Da Cultura – aspectos da vida cultural da classe trabalhadora. 1° Volume. Lisboa: Editorial Presença, 1973.
MARKMAN, Rejane. Música e simbolização. São Paulo: Annablume, 2007.
MELO, Freud de. Aparecida de Goiânia: do Zero ao Infinito. Goiânia: Asa Editora, 2002.
MORAES, Lucia Maria. A Segregação Planejada: Goiânia, Brasília e Palmas. Goiânia: Editora da UCG, 2003.
RIBEIRO, Darcy. Os Brasileiros. Livro I – Teoria do Brasil. 8 ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
SIMONE, Nilda. Um Olhar sobre Aparecida: História e Cultura. Goiânia: Kelps, 2014.
TINHORÃO, José Ramos. Cultura popular: temas e questões. São Paulo: Editora 34, 2001.

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