quinta-feira, 19 de março de 2015

Pierre Bourdieu e a Escola Proletária de Meriti


“Toda a educação assenta nestes dois princípios: primeiro repelir o assalto fogoso das crianças ignorantes à verdade e depois iniciar as crianças humilhadas na mentira, de modo insensível e progressivo”.
Franz Kafka (1883-1924)

A Escola Regional de Meriti, também conhecida como Escola Proletária de Meriti, foi criada na década de 1920 por Armanda Álvaro Alberto (Rio de Janeiro, 1892-1974), inspirada na Escola Nova e com o intento de desvelar o analfabetismo, prostituição, o trabalho forçado, entre outras disfunções no arranjo social da referida época (SILVA, 2008). Sendo que estas disfunções causavam notória distinção social, cultural e econômica – temática similar ao objeto de estudos de Pierre Bourdieu, porém no contexto argelino e europeu.

As similitudes se afunilam quando BOURDIEU (1998, p. 53), pontua: “Para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os mais desfavorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore, no âmbito dos conteúdos do ensino que transmite, dos métodos e técnicas de transmissão e dos critérios de avaliação, as desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes sociais”.

O escritor BERNAL (2006, p. 21), acrescenta que: “E essa foi sempre – e continua sendo – um dos principais objetivos dos anarquistas: propagar uma educação realmente livre, cooperativa e solidária que possa transformar radicalmente a sociedade ante a escola oficial que tem por objetivo justamente o contrário, ou seja, reproduzir tanto as diferenças sociais quanto a mesma sociedade atual, desigual e injusta”.

A Escola Proletária de Meriti foi uma tentativa de tatear uma escolarização, especificamente, para as classes operárias e rurais de Duque de Caxias, distrito de São João de Meriti – Rio de Janeiro (MIGNOT, 2002; SILVA, 2008). E por mais que Armanda Álvaro Alberto, aparentemente, não tenha tido contato com Pierre Bourdieu, apesar da contemporaneidade dos mesmos, demonstraram consonância na observação que a escola convencional não tem condições de ofertar um conhecimento de forma igualitária e contextualizado.

O autor LOURENÇO FILHO (1978, p. 176) endossa afirmando que: “Inspirada a princípio em Montessori, Armanda Alberto organizou, em breve, um sistema próprio, visando não só à educação das crianças, mas a dos pais dos alunos, problema muito particular às nossas populações rurais e que não lhe escapou ao espírito. A escola organiza campanhas de higiene, concursos de trabalhos e de arte, entre os moradores da localidade, e abre sua biblioteca à população. Foi a primeira escola a fundar, no Brasil, ura "Círculo de Mães", não só para maior coordenação do trabalho da escola com o da família, mas também para disseminação dos conhecimentos de higiene e educação doméstica”.

A Escola Proletária de Meriti funcionava em tempo integral, sem custo para os alunos e não vinculada ao governo, inclusive financeiramente - A escola era mantida por sócios contribuintes, benfeitores e fornecedores da Fundação Álvaro Alberto (MIGNOT, 2002). Foi a primeira escola da América Latina a oferecer merenda escolar, quase sempre mate com angu – cardápio este que posteriormente, em tons de sarcasmo, a escola ficou conhecida mundialmente.

A Vila de Meriti apresentava vários problemas de ordem social e principalmente de saúde publica. Faltava saneamento básico e hábitos mínimos de higiene. As crianças em Meriti geralmente tinha que ajudar nos serviços domésticos, ocasionando a inserção das referidas crianças no precário mercado de trabalho da época. Mediante a estas especificidades de Meriti, Armanda Álvaro Alberto desenvolveu práticas pedagógicas que tinha relevância prática com a vivência da comunidade em Meriti. Criou o Círculo de Pais, Círculo de Mães, entre outras iniciativas que apresentavam diversas palestras abordando as temáticas relevantes para a população local (SILVA, 2008).

Armanda Álvaro Alberto, fundadora da Escola Proletária de Meriti, fez parte do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova em 1932. Participou ativamente dos setores do movimento feminista brasileiro. Neste viés a Escola Proletária de Meriti foi um soluço de forma a oportunizar condições de acessibilidade entre aqueles que eram desligitimizados na cultura dominante.

A autora LEITE (2002, p. 37) afirma que: “Na educação, a categorização levou à criação de diferentes formas de atendimento baseadas no rendimento e capacidade individuais, estabelecendo-se uma relação normal versus patológico que se refletiu, em âmbito escolar, na criação de escolas com classes especiais e regulares. Tal estratégia manteve o "diferente" à distância, segregado, tendo como conseqüência a rotulação que alijou do sistema de ensino um considerável número de alunos que, por apresentarem déficits de aprendizagem, foram excluídos do ensino regular e inseridos no ensino especial”.

O próprio BOURDIEU (2003, p. 111) assevera que: “...de fato, basta que a instituição escolar permita o funcionamento dos mecanismos objetivos da difusão cultural e se exima de trabalhar, sistematicamente, para fornecer a todos, na e pela própria mensagem pedagógica, os instrumentos que condicionam a recepção adequada da mensagem escolar para que a Escola reduplique as desigualdades iniciais e, por suas sanções, legitime a transmissão do capital cultural”.

A Escola Proletária de Meriti causou tanto desconforto para os modeladores (dominadores) da educação brasileira daquela época que culminou na prisão de Armanda Álvaro Alberto em 1937, sob acusação de “subversão e comunismo”. Quando libertada voltou a colaborar com a escola, porém de forma menos expressiva. Veio a falecer em 1974, com 81 anos de idade.

Os autores/pensadores, Pierre Bourdieu e Armanda Álvaro Aberto, apesar de não haver registros de uma interferência textual/conceitual entre ambos, formam uma junção empírica entre a teoria e a prática - fica explicito que foram as mesmas temáticas sociológicas que os impulsionaram. Sendo assim, ambos demonstram a ineficácia da proposta escolar de protagonizar a igualdade, aflorando os habitus como fonte primaria de vivência, além de desvelar os inúmeros campos de intervenção estudantil que requerem a apropriação de capitais (intelectual, cultural, social e econômico) para a sobrevivência moderna.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 10 de Março de 2015]


::Referências Bibliográficas::

BERNAL, Anastasio Ovejero. Anarquismo espanhol e educação. In: EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA - Educação e Revolução na Espanha Libertária. Nº1. 3º quadrimestre de 2006. IEL. São Paulo: Imaginário. P.9-24

BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998.

BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O amor pela arte – os museus de arte na Europa e seu público. São Paulo: Edusp/Zouk, 2003.

LEITE, Ana Maria Alexandre. Escola Regional Meriti: Limites e Possibilidades da Escola Inclusiva. 120 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Pontifícia Universidade Católica Do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.

LOURENÇO FILHO, M. B. Introdução ao estudo da Escola Nova. São Paulo: Melhoramentos: FNME, 1978.

MIGNOT, Ana Crystina Venâncio. Baú de memórias, bastidores de histórias. O legado pioneiro de Armanda Álvaro Alberto. Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2002.

SILVA, Vilma Correa Amancio da. Um caminho inovador: o projeto educacional da Escola Regional de Merity (1921-1937). 113 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008.

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