"sonho com o dia em que todos se levantarão e compreenderão que fomos feitos para vivermos como irmãos".
Nelson Mandela (1918-2013)
A
temática da pobreza tem sido assunto de controversos debates nas últimas décadas,
pois de um lado há os que entendem a pobreza como fruto de uma discrepância social
que provoca desconexão conceitual no que tange a valores de cidadania, e, do
outro lado tem-se os que julgam a pobreza como o estereótipo da sociedade
contemporânea que resulta de uma seleção natural
da força de trabalho oriunda do capitalismo. A partir deste duelo de concepções,
Vera da Silva Telles, professora livre-docente do Departamento de Sociologia da
Universidade de São Paulo escreve, dentre várias outras literaturas, a obra
intitulada “Pobreza e Cidadania”. O livro foi publicado em 2001 pela Editora 34,
contendo a coletânea de cinco artigos originalmente escritos entre 1992 e 1998,
sob a problemática da pobreza sob a ótica da cidadania – como o próprio título da
obra propõe.
A
autora, na referida publicação, explicita várias problemáticas que suscitam uma
releitura histórica da figuração da pobreza como paisagem, natureza (SUSSEKIND,
1990) (TELLES, 1993) (TELLES, 1998) (FELTRAN, 2005). Dentre todo o escopo de
“Pobreza e Cidadania”, será destacado quatro desarranjos sociais na sociedade moderna,
a saber: 1) a desconfiguração histórica do pobre como sujeito social; 2) a
criminalização da pobreza; 3) a pobreza e o desemprego como estruturas
intencionais do capitalismo; e, 4) o Terceiro Setor como mantenedor da gestão
filantrópica da pobreza. Sendo que as referidas alíneas não seguem uma ordem
cronológica/temporal como aqui fora enumerado. Portanto, a ordem proposta é
apenas para tornar mais didático a abordagem com fins a melhor elucidar as temáticas
concernentes ao discurso de Vera da Silva Telles em “Pobreza e Cidadania”.
A
princípio faz-se necessário abordar acerca da desconfiguração histórica do
pobre como sujeito social. Portanto, é imprescindível definir o termo pobreza e
sua relação existencial. Contudo, é notório que não há uma única vertente
conceitual possível, pois a figuração do pobre pode agregar percepções/análise
diferentes, a partir do campo teórico que se está propondo, bem como de qual
referencial histórico se está vivendo. Sendo assim, por definição, a pobreza
agrega valor de subjetividade, multidimensional. O que não a torna intangível,
nem não perceptível. Por esta razão é elementar que se abalize a pobreza com
base nos valores do modelo capitalista de economia e politica presentes no
Brasil, tornando possível mensurar o estado de pobreza. Endossando este viés, o
Grande Dicionário Unificado da Língua Portuguesa (RIOS, 2010) define pobre como
aquele que: “não tem o necessário à vida. Cujas posses são inferiores à sua
posição ou condição social. (...) Pouco produtivo. Mal dotado, pouco
favorecido. (...) Miserável, indigente, mendigo, pedinte (...)”.
O
fator de subjetividade intrínseco a pobreza atrelado à formatação proativa dos
fatores econômicos fornece, então, uma radiografia reveladora sobre quem é o
sujeito pobre na contemporaneidade. Algo próximo ao que LAVINAS (2003, p. 29)
conceitua: “ser pobre é ter, portanto, sua humanidade ameaçada, seja pela não
satisfação de necessidade básicas (fisiológicas e outras), seja pela
incapacidade de mobilizar esforços e meios em prol da satisfação de tais
necessidades”. Neste contexto de desumanização do sujeito em condição de
pobreza é que se perde a condição de cidadania por si só, sendo estes
indivíduos rebaixados à inferioridade de porcos (referência ao documentário
“Ilha das Flores”, dirigido por Jorge Furtado, 1989, produzido por Casa de
Cinema de Porto Alegre).
A
concepção de pobreza condicionada pelos princípios do capitalismo moderno que
desfigura o sujeito como ser social não surgiu sem causa, sem historicidade,
sem intencionalidade. O termo “pobre” vem do latim pauper e tinha inicialmente ligação com elementos agrícolas (terras
e gados) que não tinha capacidade produtiva adequada. Com o passar dos tempos,
fruto da industrialização e urbanização, o termo “pobre” fora agregado à condição
humana, representando o empobrecimento dos trabalhadores, desigualdades
sociais, privação material, disjunção de perspectivas de futuro e inexistência
de políticas públicas efetivas (TELLES, 2001). Então, ser pobre, para os
padrões desta modernidade tardia, significa a perda da cidadania e suas
representatividades sociais.
O
segundo aspecto que merece ser destacado é a criminalização da pobreza,
expressão esta usada para denunciar o senso-comum existente entorno da condição
de pobreza e o crime (violência, drogas, ilegalidades...). A mídia funciona
como um mantenedor de tal perspectiva, pois insiste em esteriotipizar o
criminoso com as similaridades dos que estão em estado de pobreza. Como explica
JARA (2001, p. 73): “a mídia é um instrumento do livre mercado à proporção que
seduz e fabrica desejos que estimulam ao consumo. Cria, na audiência, uma
hipnose coletiva – invasão cultural -, explorando a fundo os instintos da
vaidade humana. Quase sempre informa desinformando, seja apresentando uma
imagem distorcida da realidade ou minimizando seu significado, construindo
sentidos que não correspondem à realidade. Assim, persuade e instala na mente
das pessoas valores utilitaristas que modem comportamentos e dominam as relações
sociais...”.
Os
pobres, por serem rotulados de criminosos, se tornam vítimas fáceis da violência policial (termo aqui empregado para designar não apenas a agressão
física, mas incluindo a agressão moral, verbal e outras formas de opressão),
que intencionalmente ou não, contribuem para o desrespeito dos direitos humanos
e o distanciamento do acesso à justiça – a história brasileira é recheada de
exemplos que desnudam o pré-conceito policial e má utilização do
poder/autoridade bélica contra os desafortunados, como propõem CALDEIRA (2000)
ao analisar a violência, o crime, o medo e a segregação social na cidade de São
Paulo. Como endossa PREGER apud SOUZA
(2010, p. 23): “em nome do ‘combate ao crime organizado’, diariamente, favelas
e subúrbios das grandes cidades brasileiras são invadidos por forças policias
para intimidação da população trabalhadora dessas localidades. Para que elas
jamais ousem se organizar para defender seus direitos”.
A
criminalização da pobreza fez o pobre ter que coexistir com o drama ideológico
das representações de classes sociais, suplantando-o cotidianamente as
hierarquias simbólicas e paradigmáticas da presente ordem capitalista. Como
afirma TELLES (2001, p. 82 e 83): “...o pobre é aquele que tem que provar o
tempo todo, se fazer ver e reconhecer a si próprio e à sociedade a sua própria
respeitabilidade num mundo em que os salários insuficientes, a moradia
precária, o subemprego e o desemprego periódico solapam suas condições de
possibilidade (...) constroem a figura do ‘pobre porém honesto’...”. Neste
viés, o pobre se vê numa luta constante de desmitologizar a criminalização de
si mesmo, e, ter que demonstrar que a
legitimação do crime não se restringe às periferias, mas antes de qualquer fato
é um desarranjo do homem contemporâneo.
A terceira
alínea que se destaca no presente discurso é o de perscrutar a pobreza e o
desemprego como estruturas intencionais do Capitalismo. Ao contrário do que se
julga ser a naturalidade da vida contemporânea, o desemprego é uma estratégia
intencional que funciona como agente regulador dos salários dos trabalhadores,
mantendo os valores sempre baixos e ajustados as oscilações dos ciclos econômicos
(TELLES, 2001). Karl Max chamava isto de “exército de reserva do proletariado”,
movimento intencional das classes dominantes (donos do capital) que fazia (e
faz) surgir filas enormes de pessoas desempregadas dispostas a trabalhar sem
levar em consideração as condições. A consequência disto são salários baixos e
condições trabalhistas sucateadas. Como endossa HARVEY (2005, p. 111): “Esse
exército de reserva ajuda a reduzir os salários e a controlar os movimentos da
classe trabalhadora...”.
Os
trabalhadores pobres além de terem que se submeter a salários irrisórios devido
ao medo do desemprego latente e iminente, também tem que conviver com a
insegurança/instabilidade do emprego atual. Fato este que também não é sem
causa (historicidade), pois como adverte TELLES (2001, p. 98): “...são trabalhadores
que transitam entre empresas diferentes, que permanecem muito pouco tempo nos
empregos que conseguem, que tem, por isso mesmo, pouca chance de se fixar em
profissões ou ocupações definidas e que estão sempre, real o virtualmente,
tangenciando o mercado informal...”. Por esta razão, assim como na Revolução
Industrial, o trabalhador se fragmenta – perdendo a capacidade de visão global
sobre os processos e relações sociais; não se estabelece como sujeito do
conhecimento – perdendo a noção de continuidade e representatividade das ações
desenvolvidas; e, não se firma numa carreira/profissão – perdendo a habilidade
de pensar como agente social estruturado numa sociedade, se tornando apenas
reprodutor mecanicista de etapas produtivas (superespecialização do operário,
como proposto por F. W. Taylor em 1910, teoria conhecida como Administração
Científica).
A
imprevisibilidade empregatícia e os limiares do desemprego forçam o surgimento
de uma nova força de trabalho, ocupada essencialmente pelos pobres, chamada
pomposamente por terceirização, subcontratações e trabalhos temporários. Atividades
estas que apresenta uma certa flexibilidade
nas normas contratuais permitindo que a classe paupérrima seja inserida, precariamente e sem garantias/direitos,
no mercado de trabalho. Desta maneira estes desafortunados podem fugir,
temporariamente, do estereótipo da criminalidade, vadiagem, delinquência e
ociosidade. Como reitera FERNANDES E VALENÇA (2004, p. 61): “...terceirização e
subcontratações fazem parte do quadro de reestruturação produtiva que vem cada
vez mais caracterizando o Brasil a partir dos anos 90. (...) Ao lado disto,
avança a precarização das condições de trabalho, com o inevitável aumento da
taxa de informalidade...”.
A
quarta e última abordagem se limitará sob a perspectiva da gestão filantrópica
da pobreza, essencialmente praticada pelo Terceiro Setor (organizações não
governamentais, filantrópicas, sociais e religiosas). O problema origina-se da
premissa que a pobreza deveria gerar indignação moral, porém tem gerado
compaixão. Sendo que tal realidade é fruto da ausência de função crítica sobre
igualdade, liberdade e justiça – atributos intrínsecos ao Poder Público, que no
caso do Brasil optou por omitir-se ou terceirizar
tal responsabilidade, caracterizando notoriamente uma política neoliberal. Destas
omissões públicas surgem, intencionalmente, o campo da assistência social,
“cujo objetivo não é elevar condições de vida mas minorizar a desgraça e ajudar
a sobrevir na miséria. (...) A justiça se torna em caridade e os direitos, em
ajuda a que o indivíduo tem acesso não por sua condição de cidadania, mas pela
prova de que dela está excluído” (TELLES, 2001, p. 26).
A
omissão pública do discurso sobre a pobreza fez o Terceiro Setor ganhar
destaque. Contudo, “essa nova forma de gestão social terminam também por
descaracterizar a própria noção de cidadania e direitos: a cidadania passa a
ser entendida como participação comunitária e no lugar de sujeitos de direito,
entra em cena a figura do usuário de serviços” (TELLES, 2001, p. 161). O grande
problema que circunvizinha esta temática é que o fato de alguém receber algo o
torna devedor para com este que está doando, criando uma relação de dependência
e subjugação – termos distantes da proposta de cidadania. E, para agravar tal
cenário, ainda há os que usam a filantropia como caminho eleitoreiro de
corrupção e exploração da pobreza, criando uma cadeia de reféns do sistema que
deveria promover a igualdade, liberdade e justiça.
A
crítica acerca da gestão filantrópica da pobreza não é um discurso contra as
instituições filantrópicas por si mesmas, pois estas são resultados da política
praticada no Brasil, política esta que transparece o neoliberalismo como forma
principal de gestão, bem como a manutenção da pobreza velada e maquiada. O núcleo
da problemática reside na omissão do Governo que deveria oportunizar melhorias
na qualidade de vida para o cidadão. Contudo, como criticado pelo documentário
“A história das coisas” (escrito por Annie Leonard e dirigido por Louis Fox,
2007), o Governo já se rendeu as empresas privadas e, então, defende os
interesses do capital, não da sociedade. Por esta razão, a gestão filantrópica
da pobreza não é uma iniciativa particular do Segundo Setor (empresas
privadas), mas antes de qualquer coisa é uma ação intencional do Primeiro Setor
(Governo).
Ao
finalizar esta breve análise sobre pobreza e cidadania, algumas questões
precisam ser reiteradas: 1) a desconfiguração histórica do pobre como sujeito
social é o resultado da perda da cidadania (humanização) que encontra seu
apogeu nos tempos do Capitalismo; 2) a criminalização da pobreza é um tabu
enraizado no senso-comum tupiniquim que cria o estereótipo das ilegalidades da
trama urbana nas periferias; 3) a pobreza e o desemprego são estruturas
intencionais do Capitalismo, tornando as classes paupérrimas vítimas de uma
história descontinuada e desprivilegiada no que tange ao trabalho; e, 4) o
Terceiro Setor está mantendo a gestão filantrópica da pobreza, sendo esta uma
forma de omissão/manipulação do Poder Público e, paralelamente, como meio de
manutenção da miséria. Enfim, como defendido por TELLES (2001), no Brasil a pobreza nunca foi enfrentada no horizonte da cidadania.
Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 21 de Abril de 2014]
::Referências Bibliográficas::
CALDEIRA, Tereza Pires
do Rio. Cidade de Muros: Crime, Segregação
e Cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34, 2000.
FELTRAN, Gabriel de
Santis. Desvelar a Política na Periferia:
Histórias de Movimentos Sociais em São Paulo. São Paulo: Associação
Editorial Humanitas, 2005.
FERNADES, Edesio e
VALENÇA, Márico Moraes. Brasil Urbano.
Rio de Janeiro: Mauad, 2004.
HARVEY, David. A Produção Capitalista do Espaço. São
Paulo: Annablume, 2005.
JARA, Carlos Julio. As Dimensões Intangíveis do Desenvolvimento
Sustentável. Brasília: Instituto Interamericano de Cooperação para a
Agricultura, 2001.
LAVINAS, Leda. Pobreza e Exclusão: Traduções Regionais de
duas Categorias Práticas. Revista Econômica. Niterói: UFF, vol. 4, n° 1, pp
25-59, 2003.
RIOS, Dermival Ribeiro.
Grande Dicionário Unificado da Língua
Portuguesa. São Paulo: DCI, 2010.
SOUZA, Luís Antônio
Francisco de. Sociologia da Violência e
do Controle Social. Curitiba: IESDE Brasil S/A, 2010.
SUSSEKIND, Flora. O Brasil não é Longe Daqui: o Narrador, a Viagem.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
TELLES, Vera da Silva. Direitos Sociais: Afinal, de Que se Trata? Revista
USP. São Paulo: USP, n° 37, pp. 34-45, mar./maio 1998.
TELLES, Vera da Silva. Pobreza e Cidadania. São Paulo: USP,
2001.
TELLES, Vera da Silva. Pobreza e Cidadania: Dilemas do Brasil Contemporâneo.
Caderno CRH. Salvador: UFBA, vol. 6, n° 19, pp. 8-21, jul./dez. 1993.