"Não nego a necessidade objetiva do estímulo material, mas sou contrário a utilizá-lo como alavanca impulsionadora fundamental. Porque então ela termina por impor sua própria força às relações entre os homens".
Ernesto Che Guevara (1928-1967)
Richard Hoggart (1918-2014) escreveu em 1957 o livro: “The Uses of Literacy: Aspects of Working-Class Life”. Que fora traduzido para o português em 1973 com o título: “As Utilizações da Cultura – aspectos da vida cultural da classe trabalhadora”. A referida obra apresenta limites no que tange aos referencias teórico-metodológicos, pois perscruta caminhos não sistematizados/teorizados, baseando-se no empirismo das percepções que tinham como pano de fundo a própria experiência de vida proletária do autor. Contudo, tais limitações não reduzem a utilidade/importância da obra, pois o mesmo se tornou um recorte histórico-cultural das mudanças que ocorreram na vida das pessoas da classe proletária inglesa, especificamente no pós-guerra, destacando o alcance/transformação que os meios de comunicação em massa produziram (ou reproduziram) nas periferias da Inglaterra.
Segundo Hoggart, os
meios de comunicação de massa não é meramente um convite à fuga da realidade do
proletário, é antes um constitutivo representativo da realidade das classes
proletárias, dando ênfase para os padrões massificados no aspecto social,
religioso, familiar, coletivo e empregatício. As mídias da referida época
desnudavam o cotidiano dos bairros de periferias e seus desafios
histórico-culturais, ora reafirmando paradigmas, ora desconstruindo-os de forma
lenta, gradual e intencional, recriando novos padrões sociais conforme a necessidade
(e interesse) do capital.
Hoggart afirma (1973,
p. 29, 39) que: “A distinção entre as atitudes <antigas> e <novas>,
embora não seja muito nítida, é suficientemente clara para se tornar útil. E
quando falo de atitudes <antigas> não me refiro a uma vaga tradição
pastoril, utilizada com o intuito de depreciação do presente, mas a algo com o
intuito de depreciação do presente, mas a algo que realmente existe e pode ser
claramente definido. (...) as aldeias eram abandonadas pela gente nova, e as cidades
invadiam o campo em seu redor, construindo aglomerados habitacionais baratos e
estritamente utilitários. (...) As mudanças processam-se sempre muito
vagarosamente, e as pessoas não dão pelas contradições: acreditam e não
acreditam simultaneamente”.
O livro denuncia a
severidade da vida cotidiana do proletariado inglês e suas relações de consumo
cultural. Conjunção esta que descortina a expressividade/representatividade das
relações sociais na formação do sujeito proletário, sendo todo este cenário produzido
e reproduzido nas interfaces midiáticas da época. Tendo, portanto, como
assuntos primordiais aqueles que se referem à vida comum do trabalhador
proletariado, distante dos movimentos intelectuais, literários e políticos.
Entretanto, isto não quer dizer que tais temas “comuns” não tenham relevância
histórico-cultural-social, principalmente no que se refere à construção da
identidade desta classe.
Hoggart afirma (1973,
p. 99, 100, 101, 106, 109) que: “Os membros do proletariado sentem a
necessidade de formar um grupo, porque a vida é dura (...) A maior parte desses
rapazes e dessas raparigas sabem que não têm quaisquer possibilidades de
promoção ou de fazer carreira... As canções do proletariado falam de amor, de
amigos, e de um verdadeiro lar; afirmam sempre que o dinheiro não é a coisa
mais importante. (...) Essas pessoas não conseguem geralmente sair da própria
classe ou ascender a outra superior; limitam-se a agitar-se em vão, sempre
dentro dos mesmos limites, recolhendo as insignificâncias que os outros
desprezam. (...) A linguagem e os modos de falar do proletariado são mais
abruptos. (...) No nosso bairro, os suicídios eram considerados como
acontecimentos não muito excepcionais...”
O autor perpassa sua
análise relacionando a situação econômica do trabalhador e suas
predileções/limitações de vida (canções, religiosidade, bairro, entretenimento,
entre outros). A relação dinheiro, condição de vida e existência são
entremanhadas de forma singular na vida do proletariado, compondo um modo
representativo, construído a partir das ausências do capital. Não sendo esta
uma situação denunciável, mas sim tolerável e aceitável nas classes proletárias
– realidade comumente cabível nos discursos da mídia de massa e nas
comunicações informais de bairro. Condicionar-se a uma situação de deformação e
submeter-se aos ditames dos donos do capital não é uma opção, mas sim o único
caminho de conciliar a vida na periferia.
Hoggart afirma (1973,
p. 165, 169, 175, 179, 201) que: “Os indivíduos do proletariado, como toda a
gente sabe, gostam de apostas e do jogo. (...) sabendo que não há esperanças de
que a sua vida possa melhorar através de um esforço gradual; daí o desejo de
riqueza caída do céu. (...) A maioria dos indivíduos das classes proletárias
não alimentam a ambição de subir na escala social. (...) As extravagâncias dos
adultos podem parecer insignificantes (...) são esses pequenos nadas que dão
alegria e variedade à vida. (...) Todas as pessoas se vão divertir ao mesmo
tempo, uma vez que os apitos das fábricas soam para acabar o trabalho quase
todos à mesma hora. (...) As canções e o gosto pelo canto característicos das
classes proletárias exemplificam muito bem tanto a continuação das velhas
tradições, como a capacidade de adaptação e assimilação das novidades, que são integradas
na tradição. (...) A vida lá fora, a vida da segunda-feira, é muito dura...”
Enfim, Hoggart
denuncia a fragilidade dos padrões sociais que se endossam pela mídia de massa,
ao mesmo tempo em que demonstra a representatividade destas relações na formação
do sujeito trabalhador inglês. Descreve uma sociedade em que a mulher tem um
papel definido na relação matrimonial, o marido exerce uma função essencial na
relação de manutenção do lar, o bairro configura-se numa relação
social-afetiva, a religião exerce uma funcionalidade ética na formação dos
indivíduos e as canções representam um gangorrear dos sentimentos nostálgicos
do proletariado. Por tudo isto, fica latente que os aspectos da vida cultural
da classe trabalhadora são sui generis
e que tais peculiaridades não são fruto do acaso histórico, mas foram
construídas, arquitetadas e planejadas para uma cultura utilitarista tracejada
de capitalismo.
Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 10 de Maio de 2014]
::Referências Bibliográficas::
HOGGART, Richard. As Utilizações Da Cultura – aspectos da
vida cultural da classe trabalhadora. Lisboa: Editorial Presença, 1973.