segunda-feira, 26 de maio de 2014

Hoggart: a mídia e a formatação social

"Não nego a necessidade objetiva do estímulo material, mas sou contrário a utilizá-lo como alavanca impulsionadora fundamental. Porque então ela termina por impor sua própria força às relações entre os homens".
Ernesto Che Guevara (1928-1967)

Richard Hoggart (1918-2014) escreveu em 1957 o livro: “The Uses of Literacy: Aspects of Working-Class Life”. Que fora traduzido para o português em 1973 com o título: “As Utilizações da Cultura – aspectos da vida cultural da classe trabalhadora”. A referida obra apresenta limites no que tange aos referencias teórico-metodológicos, pois perscruta caminhos não sistematizados/teorizados, baseando-se no empirismo das percepções que tinham como pano de fundo a própria experiência de vida proletária do autor. Contudo, tais limitações não reduzem a utilidade/importância da obra, pois o mesmo se tornou um recorte histórico-cultural das mudanças que ocorreram na vida das pessoas da classe proletária inglesa, especificamente no pós-guerra, destacando o alcance/transformação que os meios de comunicação em massa produziram (ou reproduziram) nas periferias da Inglaterra.

Segundo Hoggart, os meios de comunicação de massa não é meramente um convite à fuga da realidade do proletário, é antes um constitutivo representativo da realidade das classes proletárias, dando ênfase para os padrões massificados no aspecto social, religioso, familiar, coletivo e empregatício. As mídias da referida época desnudavam o cotidiano dos bairros de periferias e seus desafios histórico-culturais, ora reafirmando paradigmas, ora desconstruindo-os de forma lenta, gradual e intencional, recriando novos padrões sociais conforme a necessidade (e interesse) do capital.

Hoggart afirma (1973, p. 29, 39) que: “A distinção entre as atitudes <antigas> e <novas>, embora não seja muito nítida, é suficientemente clara para se tornar útil. E quando falo de atitudes <antigas> não me refiro a uma vaga tradição pastoril, utilizada com o intuito de depreciação do presente, mas a algo com o intuito de depreciação do presente, mas a algo que realmente existe e pode ser claramente definido. (...) as aldeias eram abandonadas pela gente nova, e as cidades invadiam o campo em seu redor, construindo aglomerados habitacionais baratos e estritamente utilitários. (...) As mudanças processam-se sempre muito vagarosamente, e as pessoas não dão pelas contradições: acreditam e não acreditam simultaneamente”.

O livro denuncia a severidade da vida cotidiana do proletariado inglês e suas relações de consumo cultural. Conjunção esta que descortina a expressividade/representatividade das relações sociais na formação do sujeito proletário, sendo todo este cenário produzido e reproduzido nas interfaces midiáticas da época. Tendo, portanto, como assuntos primordiais aqueles que se referem à vida comum do trabalhador proletariado, distante dos movimentos intelectuais, literários e políticos. Entretanto, isto não quer dizer que tais temas “comuns” não tenham relevância histórico-cultural-social, principalmente no que se refere à construção da identidade desta classe.

Hoggart afirma (1973, p. 99, 100, 101, 106, 109) que: “Os membros do proletariado sentem a necessidade de formar um grupo, porque a vida é dura (...) A maior parte desses rapazes e dessas raparigas sabem que não têm quaisquer possibilidades de promoção ou de fazer carreira... As canções do proletariado falam de amor, de amigos, e de um verdadeiro lar; afirmam sempre que o dinheiro não é a coisa mais importante. (...) Essas pessoas não conseguem geralmente sair da própria classe ou ascender a outra superior; limitam-se a agitar-se em vão, sempre dentro dos mesmos limites, recolhendo as insignificâncias que os outros desprezam. (...) A linguagem e os modos de falar do proletariado são mais abruptos. (...) No nosso bairro, os suicídios eram considerados como acontecimentos não muito excepcionais...”

O autor perpassa sua análise relacionando a situação econômica do trabalhador e suas predileções/limitações de vida (canções, religiosidade, bairro, entretenimento, entre outros). A relação dinheiro, condição de vida e existência são entremanhadas de forma singular na vida do proletariado, compondo um modo representativo, construído a partir das ausências do capital. Não sendo esta uma situação denunciável, mas sim tolerável e aceitável nas classes proletárias – realidade comumente cabível nos discursos da mídia de massa e nas comunicações informais de bairro. Condicionar-se a uma situação de deformação e submeter-se aos ditames dos donos do capital não é uma opção, mas sim o único caminho de conciliar a vida na periferia.

Hoggart afirma (1973, p. 165, 169, 175, 179, 201) que: “Os indivíduos do proletariado, como toda a gente sabe, gostam de apostas e do jogo. (...) sabendo que não há esperanças de que a sua vida possa melhorar através de um esforço gradual; daí o desejo de riqueza caída do céu. (...) A maioria dos indivíduos das classes proletárias não alimentam a ambição de subir na escala social. (...) As extravagâncias dos adultos podem parecer insignificantes (...) são esses pequenos nadas que dão alegria e variedade à vida. (...) Todas as pessoas se vão divertir ao mesmo tempo, uma vez que os apitos das fábricas soam para acabar o trabalho quase todos à mesma hora. (...) As canções e o gosto pelo canto característicos das classes proletárias exemplificam muito bem tanto a continuação das velhas tradições, como a capacidade de adaptação e assimilação das novidades, que são integradas na tradição. (...) A vida lá fora, a vida da segunda-feira, é muito dura...”

Enfim, Hoggart denuncia a fragilidade dos padrões sociais que se endossam pela mídia de massa, ao mesmo tempo em que demonstra a representatividade destas relações na formação do sujeito trabalhador inglês. Descreve uma sociedade em que a mulher tem um papel definido na relação matrimonial, o marido exerce uma função essencial na relação de manutenção do lar, o bairro configura-se numa relação social-afetiva, a religião exerce uma funcionalidade ética na formação dos indivíduos e as canções representam um gangorrear dos sentimentos nostálgicos do proletariado. Por tudo isto, fica latente que os aspectos da vida cultural da classe trabalhadora são sui generis e que tais peculiaridades não são fruto do acaso histórico, mas foram construídas, arquitetadas e planejadas para uma cultura utilitarista tracejada de capitalismo.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 10 de Maio de 2014]


::Referências Bibliográficas::
HOGGART, Richard. As Utilizações Da Cultura – aspectos da vida cultural da classe trabalhadora. Lisboa: Editorial Presença, 1973.

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