quarta-feira, 5 de março de 2014

Os pobres e a exclusão socioeducacional


“Superar a pobreza não é um gesto de caridade. É um ato de justiça; É a proteção de um direito humano fundamental, o direito à dignidade e a uma vida decente”.
Nelson Mandela (1918-2013) 

A pobreza é uma realidade nos rincões brasilianos[1], e tal mazela tornar visível a incapacidade humana de interagir socialmente tendo em visto o bem coletivo, provocando a marginalidade. Neste viés, sem as devidas análises históricas-antropológicas, “os pobres são identificados com o banditismo, o crime, a prostituição, a mendicância e outros fenômenos da patologia social, constituindo a classe perigosa” (LAPA, 2008:18). É imprescindível que se desenvolva um estudo sistemático sobre os pobres, postulando sobre as raízes etnográficas desta subclasse social, discorrendo sobre as âncoras que abalizam a consciência social destes e pesquisando sobre a formação cultural-cosmológica dos excluídos.

A pobreza, quando não analisada de forma sociológica pode, erroneamente, ser categorizada, precocemente, apenas como má sorte de alguns que por não terem capacidades “especificas” permanecem pobres – ignorando toda e qualquer relação/ responsabilidade dos semelhantes seres humanos. Temas sociais estes abordados no poema de LIMBERGER (2002:85) intitulado Sociedade Capitalista: “Ganância, lucros e juros | Desumanização | A bolsa de valores | Jogo capitalista | (...) | Desigualdade social | Ferida aberta | Sem saída | Fechar-se em um pequeno mundo | Cercado de grades e muros | Em volta tudo que o dinheiro possa comprar”.

As desvirtudes presentes nas comunidades em estado de vulnerabilidade social tem recebido uma nova reconstrução na cosmovisão pós-moderna, como aponta MARTINS: “no Brasil, políticas econômicas atuais, que poderiam chamar-se neoliberais, acabam por provocar, não políticas de exclusão e, sim, políticas de inclusão precária e marginal, ou seja, incluem pessoas nos processos econômicos, na produção e na circulação de bens e serviços estritamente em termos daquilo que é racionalmente conveniente e necessário à mais eficiente (e barata) reprodução do capital” (MARTINS, 1997:20). Neste sentido, os meios de produção industrial e as instituições educacionais fomentam uma falsa acessibilidade humanística/social que acoberta a real exclusão dos pobres, que são usados apenas como força motriz do mais-valia[2] de Marx. Tal intendo só é possível por causa do rompimento antropológico do ser humano com sua própria historicidade e por causa da desconstrução social dos grupos marginalizados com sua própria relação mercantil.

As comunidades que se localizam nas periferias coexistem distantes dos centros urbanos, sendo que a priori esta pobreza “não transforma homens em ralé” (HEGEL, 1997:277). Contudo, agregado a este distanciamento urbano surge as dificuldades de acesso a informação, escolas, faculdades, leitura, manifestações culturais, poesia, por conseguinte apresentam uma baixa renda familiar. Uma das grandes carências destas comunidades de excluídos[3] é a ausência de programas, contínuos e intencionais, que fomentem o desenvolvimento socioeducacional desta gente. Tendo em vista que as limitações socioeducacionais impostas pelo estado de pobreza dos grupos minoritários descortinam os fatos sociais[4] que os mantem em condições marginais.

A linguagem poética pode ser utilizada como ferramenta de combate ao analfabetismo e/ou analfabetismo funcional[5] - sendo estes os principais fatores que mantem tais grupos no submundo do Capitalismo, forçando-os a serem explorados socialmente, inaptos educacionalmente e estereotipizados antropologicamente. O escritor e poeta José SARAMAGO endossa tal pressuposto no poema Fala do Velho do Restelo Ao Astronauta (1997:84): “Aqui, na Terra, a fome continua, | A miséria, o luto, e outra vez a fome. | Acendemos cigarros em fogos de napalme | E dizemos amor sem saber o que seja. | Mas fizemos de ti a prova da riqueza, | Ou talvez da pobreza, e da fome outra vez. | E pusemos em ti nem eu sei que desejo | De mais alto que nós, de melhor e mais puro. | No jornal soletramos, de olhos tensos, | Maravilhas de espaço e de vertigem: | Salgados oceanos que circundam | Ilhas mortas de sede, onde não chove. | Mas o mundo, astronauta, é boa mesa | (E as bombas de napalme são brinquedos), | Onde come, brincando, só a fome, | Só a fome, astronauta, só a fome”.

A vivência das comunidades em estado de vulnerabilidade social apresenta algumas particularidades, a saber: 1) A simplificação da vivência social, sendo a busca existencial limitada às necessidades fisiológicas[6] – tornando uma utopia pouco admirável as lutas urbanas cunhadas pelo homo economicus[7]; 2) A segregação étnica e cultural, sendo empiricamente perceptível que a maioria dos que comungam da comunidade em estado de vulnerabilidade social são de cor negra – fomentando o imaginário racista[8] tupiniquim que vale-se das diferenças antropológicas como fator de opressão/escravidão racial/capitalista; e, por fim, 3) A ineficiência da educação formal, sendo esta descontextualizada e ininteligível para os marginalizados, adestrando-os academicamente – desnudando a educação informal como a acolhedora dos excluídos, reconstruindo as relações sociais[9] e relendo o homem a partir do saber reflexivo (práxis) e contemplativo (poético).

Faz-se necessário reavaliar as práticas socioeducacionais a partir do pressuposto de cidadania, solidariedade e amor – pilares da função poética e elementos subsistentes entre as comunidades pobres, como endossa BRANDÃO: “Ao falar de educação e de aprendizagem, escrevo falando do amor e da solidariedade. Ao pensar em cidadania, lembro a partilha e participação. Ao sugerir em nome do que, para quem e com quem destino de pessoa ou sociedade vale a pena reinventar o amor como fonte e destinatário da própria educação, sugiro também gestos interativos e ações sociais que o tornem um experiência concreta da vida (...) a educação não muda o mundo. A educação muda as pessoas. As pessoas mudam o mundo” (BRANDÃO, 2005:25,31). Pelo exposto por BRANDÃO podemos ratificar que o processo de exclusão se inicia a partir do distanciamento fraterno que nutri a existência humana. Somente quando a educação se engordura entre as sociedades é que pode haver ensino relevante e contextual.

É de suma importância a análise da pobreza como fator de exclusão socioeducacional, pois a miséria é um estado provocado pela má aglomeração social. Desta perspectiva percebe-se a ineficiência do Capitalismo como fator de ascensão social, pois como afirma DEMO: “...os pobres excluídos aumentam, já não são funcionais ao sistema produtivo, vivem a angústia existencial da desqualificação etc (...) esperar que o capitalismo aceite assistir a todos os pobres é uma banalidade comprometedora (...) se os excluídos ameaçam a ordem social, não cabe vê-los como simplesmente ‘excluídos’; dialeticamente falando, fazem parte do sistema, mesmo que se sintam inúteis” (DEMO, 2002:4,6,30).

A perda da consciência sociológica (fraterna e poética) e, então, o inevitável destaque individualístico de alguns (leia-se, dos afortunados) corrobora para a sedimentação do conceito durkheimiano de solidariedade orgânica[10]. A linguagem poética pode ser um lampejo de esperança nesta inquietante desigualdade social. Através da perspectiva sociolingüística intrínseca a função poética pode-se conscientizar, confrontar e confortar. Na poesia pode-se contemplar a realidade social à volta e propor caminhos mais coloridos a partir de uma práxis artística. Na poesia pode-se desarmar os preconceitos culturais enraizados historicamente nas periferias e propor discussões contextualizadas com relevância social, educacionais e lingüística.

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 20 de Novembro de 2013]



[1] O termo brasiliano foi muito difundido e popularizado na obra de ROQUETTE-PINTO (1884-1954) - médico, professor, escritor, antropólogo, etnólogo e ensaísta brasileiro. Ele escreveu, entre outras obras: Guia de antropologia (1915), Rondônia (1916), Seixos rolados Estudos brasileiros (1927), Ensaios de antropologia brasiliana (1933) e Ensaios brasilianos (1941). Qualquer estudo/pesquisa sobre a pobreza e seus impactos socioeducacionais devem se ater a clássica advertência de ROQUETTE-PINTO quanto aos índios: “nosso papel social deve ser simplesmente proteger, sem procurar dirigir, nem aproveitar essa gente” (ROQUETTE-PINTO, 1938:304).
[2] O termo mais-valia foi utilizado por Karl MARX (1818-1883) para demonstrar a injustiça/desigualdade capitalística de condicionar os trabalhadores a produzir excessivamente e estes não partilharem dos lucros deste labor – tal pressuposição é a base para o acumulo de capital, como Marx afirma: “a valorização do capital, isto é, apropriar-se de trabalho excedente, produzir mais-valia, lucro” (MARX, 1974:289).
[3] A utilização da expressão comunidades de excluídos se deve pelo fato deste grupo estar às margens da evolução acadêmica, distantes das manifestações culturais e por apresentar uma lentidão no processo de melhoria na qualidade de vida.
[4] DURKHEIM define fatos sociais, nos seguintes termos: “É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior, (...) que é geral na extensão de uma sociedade dada, e, ao mesmo tempo, possui existência própria, independente de suas manifestações individuais” (DURKHEIM, 2007:13).
[5] O termo analfabetismo funcional refere-se àquelas pessoas que aprenderam a decodificar a linguagem escrita de forma muito rudimentar e, então, não conseguiram desenvolver a habilidade de interpretação de texto, tem dificuldades com leitura e construção de redação.
[6] Necessidades fisiológicas “são as necessidades vegetativas relacionadas à fome, ao sono, ao cansaço etc. Essas necessidades dizem respeito à sobrevivência do indivíduo e da espécie...” (OLIVEIRA, 2002:150).
[7] O termo homo economicus pode ser entendido com o máxima: “as pessoas estão interessadas em ganhos financeiros, pura e simplesmente” (CHIAVENATO, 2004:116). O termo foi criado no período do taylorismo (aproximadamente 1910), fruto final da Revolução Industrial, sendo confrontado posteriormente pelo conceito do homo social resultante da experiência de Hawthorne (aproximadamente 1930).
[8] “Os negros e pardos são 64 % dos pobres (...) O racismo deve ser pensado como resultado da conjunção entre a crise da modernidade e a dificuldade que esta possui de integrar a diferença” (GOMIDE, 2002:53).
[9] “A educação é parte da engrenagem social (...) a educação é função da sociedade” (CENDALES, 2006:13).
[10] DURKHEIM definiu a solidariedade orgânica em sua obra “Da Divisão do Trabalho Social” escrita em 1893. A solidariedade orgânica implica numa maior autonomia, com uma consciência individual mais livre. Ou seja: “ela liga diretamente as coisas às pessoas, mas não as pessoas entre si (...) ela não faz que as vontades se movam em direção a fins comuns, mas apenas que as coisas gravitem com ordem em torno das vontades (...) Longe de unir, elas só ocorrem para melhor separar o que está unido pela força das coisas, para restabelecer os limites que foram violados e recolocar cada um em sua esfera própria”  (DURKHEIM, 1999:91 e 94).

::Referências Bibliográficas::
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Aprender o amor: sobre um afeto que se aprende a viver. São Paulo: Papirus, 2005.
CENDALES, Lola; GERMÁN, Mariño. Educação Não-Formal e Educação Popular. São Paulo: Loyola, 2006.
CHIAVENATO, Idalberto. Introdução à Teoria Geral da Administração – Edição Compacta. 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
DEMO, Pedro. Charme da Exclusão Social. 2. ed. São Paulo: Autores Associados, 2002.
DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
DURKHIEM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
GOMIDE, Denise (org.). Racismo no Brasil. São Paulo: ABONG, 2002.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. 2. ed. São Paulo: Ícone, 1997.
LAPA, José Roberto do Amaral. Os Excluídos: Contribuição à História da Pobreza no Brasil. São Paulo: Editora da UniCamp, 2008.
LIMBERGER, Fabrício. Poemas Secretos. São Paulo: AGE, 2002.
MARTINS, José de Souza Martins. Exclusão Social e a Nova Desigualdade. 3. ed. São Paulo: Paulos, 1997.
MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
OLIVEIRA, Silvio Luiz de. Sociologia das Organizações: Uma análise do homem e das empresas no ambiente competitivo. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.
ROQUETTE-PINTO, Edgard. Rondônia. 4. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938.
SARAMAGO, José. Os Poemas Possíveis. Editorial Caminho, 1997.

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