sábado, 29 de março de 2014

O acumulo de capital e a desigualdade social em Goiânia


"A propriedade privada introduz a desigualdade entre os homens, a diferença entre o rico e o pobre, o poderoso e o fraco, o senhor e o escravo, até a predominância do mais forte. O homem é corrompido pelo poder e esmagado pela violência".
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)

No dia 22 de Fevereiro de 2010, a Organização das Nações Unidas (ONU), apresentou um relatório no Fórum Mundial de Habitação (Rio de Janeiro, Brasil), baseado no Índice Gini[1]. No citado relatório a cidade de Goiânia foi apontado como uma das quatro cidades com maior índice de desigualdade social do País e a 10ª com maior desigualdade na distribuição de renda no Mundo. Cecília Martinez, em publicação feita pela Assembléia Legislativa do Estado de Goiás, destacou que “o estudo realizado não mede crescimento econômico e sim de desigualdades. É muito comum um local com grande desenvolvimento econômico apresentar por consequência aumento na desigualdade social (...) as cidades estão em constante movimento e devem acompanhar estas mudanças e oferecer condições e oportunidades à sua população. O que o relatório fez não foi medir se as cidades são melhores ou piores, e sim se estão sendo capazes de acompanhar suas mudanças dando oportunidades ao seu povo (...) os problemas do mundo estão se tornando estritamente urbanos e por isso a importância do estudo realizado pela ONU que permite acompanhar como as cidades estão evoluindo”[2].

O ritmo de produção acelerada proposto pela Revolução Industrial (século XVIII e XIX), que ainda ganha evidência no cenário urbano contemporâneo, provoca uma antiga discussão sobre a desumanização do homem social em prol do acumulo de capital individual. Vera da Silva TELLES adverte: “...a questão social é a aporia das sociedades modernas que põe em foco a disjunção, sempre renovada, entre a lógica do mercado e a dinâmica societária, entre a exigência ética dos direitos e os imperativos de eficácia da economia, entre a ordem legal que promete igualdade e a realidade das desigualdades e exclusões tramada na dinâmica das relações de poder e dominação” (1996, p. 85). A cidade de Goiânia foi historicamente se aculturando neste “novo” formato de distribuição de renda – que como denunciado pelo relatório da ONU-Habitat, não está sendo distribuído, mas sim acumulado por alguns. Por conseguinte, no outro extremo, estão sendo sucumbidos a pobreza, e suas variáveis socioeducacionais, um número considerável de pessoas na Capital Goiana, gerando a desigualdade social.

No Jornal Opção, em 15 de Setembro de 2012, o pesquisador do tema da desigualdade social, o professor e cientista social Dijaci David de Oliveira, da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG), comenta que: “Na verdade, a desigualdade social cresceu desde a década de 1970, quando não fez a distribuição das riquezas (...) O governo Lula corrige parte desse equívoco quando aposta nos programas de transferência de renda e em ações afirmativas (...) As empresas [em Goiânia] têm geralmente poucos empregados e são, em muitos casos, familiares. Os dividendos acabam distribuídos de forma doméstica (...) Os mais ricos poderiam distribuir melhor suas riquezas, têm margens de lucros imensas. Em vez disso, sonegam o que podem e concentram (riquezas) mais ainda, ao não pagar bem seus trabalhadores; como se não bastasse, ainda terceirizam o que for conveniente, precarizando as relações de trabalho (...) A transferência de renda não deve ser exclusividade do poder público”[3] – destaque do autor.

O jornalista Nelcivone Melo, do Diário de Goiás, em 18 de Março de 2014, detalha estatisticamente sobre o acumulo de riquezas em Goiânia, e explica que: “O índice de Gini é calculado por uma fórmula que compara os 20% mais pobres da população com os 20% mais ricos. Em Goiânia os 20% mais pobres detém apenas 3,34% da riqueza e os 20% mais ricos 63,06% - dados de 2010 (...) Na minha opinião o melhor a ser feito é intensificar os investimento em educação construindo novas escolas e melhorando a qualidade do ensino em todos os níveis. Não basta erradicar o analfabetismo, é preciso também aumentar o tempo de permanência nas escolas e aumentar o tempo de escolaridade. É sabido que existe uma relação direta entre a escolaridade e a renda”[4]. O professor João Batista de Deus, professor do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa), da Universidade Federal de Goiás (UFG), referindo-se aos dados apresentados pela ONU-Habitat, também defende que há uma relação estreita entre desigualdade social e nível educacional: “Como os adultos pobres que moram em Goiás, em geral, têm pouca qualificação profissional, é preciso, além das ações de governo que já visam reduzir essas discrepâncias, investir nas escolas. Temos de ter como meta salvar a geração seguinte e a educação é fundamental”[5].

As causas da desigualdade social tem sua relação estreita entre educação e pobreza. Contudo, fazer desta questão uma panaceia social não constitui em ato revelador, nem consensual. Como propõem o sociólogo brasileiro Simon SCHWARTZMAN, que após interpretar os resultados de um estudo Delphi[6] com 50 especialistas e 32 autoridades educacionais, ponderou que: “Intuitivamente, pode parecer óbvio que, nas sociedades que podem proporcionar uma boa educação básica a todas as pessoas, existe mais igualdade de oportunidades. Há forte evidência de que as diferenças em educação são o principal correlato da desigualdade de renda, e que os países com pouca educação são, normalmente, os mais desiguais socialmente. No entanto, se não existe novas oportunidades de trabalho, a expansão da educação pode funcionar simplesmente como um mecanismo para distribuir os postos existentes de acordo com as credenciais educacionais dos candidatos, credenciais estas que dependem, por sua vez, do capital cultural e dos recursos financeiros dos estudantes e suas famílias. Uma oferta maior de oportunidades educacionais pode reduzir o valor das credenciais, mas não levaria, por si só, à criação de riqueza adicional” (2004, p. 152).

As mudanças constantes no cenário econômico, educacional, social, político e cultural, tanto no âmbito nacional quanto no internacional, estão se dando numa velocidade descompassada frente ao ritmo de crescimento/desenvolvimento da cidade de Goiânia – “distanciando” os ricos dos pobres, mas fazendo-os viverem no mesmo espaço geográfico. Tal realidade pode ter como hipótese aceitável o fato migratório, como defendido por Elder Dias no Jornal Opção (citado anteriormente): “Goiânia é uma cidade atraente. Nas estatísticas, está entre as capitais já consideradas consolidadas — excetuam-se as de Estados que eram territórios ou criados recentemente, como Palmas, no Tocantins —, que mais atraem para si uma enorme população, boa parte de outros Estados. Esse contingente vem em busca de melhores condições de vida, cada um a seu modo. Mas não só de pobres se constitui essa massa: há também, por exemplo, executivos de grandes empresas e indústrias da região metropolitana e de outras cidades. O grande desenvolvimento do Estado nas últimas décadas possibilitou também esse outro tipo de fluxo migratório (...) Goiânia virou parada tanto para quem está em situação cômoda financeiramente como para gente que vem tentar a sorte”[7].

Segundo a PNAD (Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio, desenvolvida pelo IBGE), em 2009[8], em termos absolutos, São Paulo é o Estado que mais recebeu imigrantes (535 mil), seguido de Minas Gerais (288 mil), Goiás (264 mil), Bahia e Paraná (ambos com 203 mil novos imigrantes). Entretanto, no que tange ao Índice de Eficácia Migratória, Goiás é o maior entre todos os Estados da Federação, com 0,32 – este Índice é a diferença entre a quantidade de pessoas que entraram no Estado (imigrantes) e as que saíram (emigrantes). Portanto, Goiás é o Estado com maior percentual no saldo líquido migratório - sendo que São Paulo apesentou um Índice de (-) 0,05, e Minas Gerais 0,02. Agravando este discurso, pensando especificamente no lado que personifica os imigrantes pobres em Goiânia, o jornalista Jackson Abrão, no Jornal Bom Dia Goiás[9], exibido em 21 de Março de 2014, acrescenta que o perfil migratório (dos pobres) para Goiânia é basicamente de pessoas com baixa renda, baixa qualificação e baixo nível educacional. Elementos estes que potencialmente impelem pessoas para a criminalidade.

Na reportagem de Alfredo Junqueira, publicada pelo Estadão, em 20 de Março de 2010, registra a mesma preocupação: “na avaliação do coordenador do relatório e diretor do Centro de Estudos e Monitoramentos das Cidades do Programa da ONU para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat), o mexicano Eduardo Lopez Moreno, existe vínculo direto entre desigualdade e criminalidade”[10]. Segundo um estudo feito pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, com o título: “Avanço da criminalidade nos centros urbanos: análise das causas da violência e falta de segurança em Goiânia”, escrito por Fernanda Bueno Penha, Carolini Bueno Penha e Josimar Gonçalves da Silva, apresentam as seguintes estatísticas e considerações sobre a criminalidade na Capital Goiana: “O trafico de drogas, crimes relacionados a acerto de contas e ao consumo de álcool são os principais motivos que levam a capital goiana a ocupar o 17º lugar no ranking de números absolutos das cidades mais violentas, com taxa de homicídio de 44,3 casos por 100 mil habitantes (...) Pobreza, precariedade de condições de vida, desigualdade social e densidade populacional costumam ser apontados como possíveis causas para a violência. Com base no exposto, a cidade de Goiânia está sujeita a ocorrência maior do crime de homicídio, considerando o aumento da população em área sem infra-estrutura...”[11].

É necessário reiterar, como defendido por Vera da Silva TELLES, professora livre-docente do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, no livro “Nas tramas da cidade – trajetórias urbanas e seus territórios” (2006), que não se faça o juízo preconcebido de uma criminalização da pobreza. É imprescindível que se analise todas as variáveis histórico-culturais que fomentam a criminalidade urbana e seus desdobramentos de territorialidade. Igualmente, no que tange a pobreza, é mister que se compreenda os fatores de impelem as pessoas a um estado de ausência/recessão do capital, comumente denominado de pobreza. Entrelaçar e condicionar a criminalidade ao estado de pobreza é minimizar os reais problemas estruturais da sociedade que mantem o atual sistema capitalista. Então, criminalidade não é uma questão exclusiva de classe social. Reafirmando tal preocupação, as autoras Juliana Daibert e Ana Lúcia Rodrigues apud Paulo César BONI (2011) afirma que as grandes mídias fortalecem o estereótipo de pobreza-criminalidade, o que reforça as hierarquias já estabelecidas e sedimenta um consenso em torna da temática.

O chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Assistência Social, Jefferson Coelho Lopes, representante do prefeito de Goiânia, Paulo Garcia, apresentou um defesa frente ao relatório da ONU-Habitat, contra-argumentando que: “...acredito que nos próximos anos, se continuarmos no mesmo caminho, Goiânia estará como uma das melhores cidades em termos de desigualdade social. Estamos combatendo a fome e a pobreza, e isto irá mudar esta realidade, comentou”[12]. Neste ínterim se passaram quatro anos (2010-2014), e a discussão continua distante de uma resolução prática. Então, como que num sussurro dos que vivem em Goiânia, emerge ponderações como a do Rapper[13] Goiano, Dener Cordeiro de Paula[14] (ou “Renedy”, nome artístico), de apenas 20 anos, que escreve na música “reflexão”, as seguintes provocações: “Você se importa com coisas inúteis, | E ás vezes não vê, | Perde o próprio raciocínio, | Sem perceber. | Ajuda um desconhecido, | A ganhar milhões na TV, | Se esquecendo que várias famílias | Não tem o que comer. | Por quê? Nossa mente, | É tão fácil de se perder, | (...) | Mas Não, ser humano, | Quer aumentar seu cachê, | Agride seus princípios | Pra tentar se desenvolver. | (...) | Mas a questão é que a paz sem justiça, é ilusão. | (...) Faça você mesmo, sua própria reflexão”.

Por fim, o questionamento de David HARVEY (2005) continua a ecoar, retoricamente, sem resposta pelas ruas e avenidas de Goiânia: Será que é possível se chegar a uma forma de organização social que garanta uma distribuição justa do produto social entre capital e trabalho, uma organização que também dê, ao trabalhador oportunidades de educação e progresso pessoal? Como podem ser reconciliados esses interesses opostos?

Assim e simplesmente,
Vinicius Seabra | vs.seabra@gmail.com
[escrito em 29 de Março de 2014]



[1] O Índice Gini é um instrumento para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo, foi criado pelo matemático italiano Corrado Gini (1884-1965).
[2] Disponível em: <http://al-go.jusbrasil.com.br/noticias/2185679/desigualdade-social> Acesso em: 26 de Março de 2014.
[3] Disponível em: <http://www.jornalopcao.com.br/posts/reportagens/os-extremos-se-encontram-em-goiania> Acesso em: 26 de Março de 2014.
[4] Disponível em: <http://diariodegoias.com.br/opiniao/5368-goiania-o-indice-de-gini-e-a-desigualdade-social> Acesso em: 26 de Março de 2014.
[5] Disponível em <http://www.ascom.ufg.br/pages/13084-goiania-e-10-mais-desigual-no-mundo> Acesso em: 27 de Março de 2014.
[6] Estudo Delphi é foi usada pela primeira vez pela Instituição RAND nos anos 50 para ajudar a força aérea dos EUA a identificar a capacidade que os soviéticos tinham para destruir alvos estratégicos americanos. Delphi é uma metodologia científica que permite analisar dados qualitativos.
[7] Disponível em: <http://www.jornalopcao.com.br/posts/reportagens/os-extremos-se-encontram-em-goiania> Acesso em: 26 de Março de 2014.
[8] Disponível em : <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2009/pnad_sintese_2009.pdf>
[9] Disponível em: <http://globotv.globo.com/tv-anhanguera-go/bom-dia-go/v/jackson-abrao-comenta-o-alto-indice-de-desigualdade-social-em-goiania/3228434/> Acesso em: 27 de Março de 2014.
[10] Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,goiania-e-a-cidade-mais-desigual-do-brasil,526930,0.htm> Acesso em : 26 de Março de 2014.
[11] Disponível em: <http://www.sbpcnet.org.br/livro/63ra/resumos/resumos/3652.htm> Acesso: 27 de Março de 2014.
[12] Disponível em: < http://al-go.jusbrasil.com.br/noticias/2185679/desigualdade-social> Acesso em: 26 de Março de 2014.
[13] O Rap é um discurso rítmico com rimas e poesia, surgido na Jamaica nos anos 60 e popularizada pelos negros de periferia dos estados Unidos no final do século XX. A linguagem do Rap é demasiadamente difundida entre as classes pobres e serve como instrumento de crítica e reflexão.
[14] Dener Cordeiro de Paula é aluno da UNIP em Goiânia (Go), no curso de Administração. Para conhecer mais o trabalho musical dele acesse: https://soundcloud.com/renedy10

::Referências Bibliográficas::
BONI, Paulo César (org). Fotografia: múltiplos olhares. Londrina: Midiograf, 2011.
HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2005.
SCHWARTZMAN, Simon. As causas da pobreza. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
TELLES, Vera da Silva e CABANES, Robert (org). Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios. São Paulo: Associação Editorial Humanistas, 2006.
TELLES, Vera da Silva. Questão Social: afinal do que se trata? São Paulo em Perspectiva, vol. 10, n. 4, out-dez/1996. p. 85-95.

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